segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Freelancer, empreendedor e pejotização


Por Adu Verbis

Durante um bom tempo, ser freelancer foi sinônimo de liberdade. E, nessa liberdade, havia um quê de glamourização. Ser freelancer era aquele profissional sem chefe, com a pasta de trabalho debaixo do braço e a agenda florida de contatos de trabalhos. Parecia encarnar o futuro do trabalho: autônomo, criativo, dono do próprio nariz. Foi especialmente nas décadas de 1980 e 1990 que a figura do freelancer ganhou certo glamour, principalmente em áreas como jornalismo, design gráfico, artes plásticas, publicidade e outros tantos setores de profissionais liberais das classes média e alta.

Naquele período, como todos sabem, a tecnologia engatinhava. Laptops não existiam, a internet estava longe de ser uma realidade e a inteligência artificial sequer aparecia para mascarar deficiências profissionais ou aprimorar competências.

O termo freelancer tem um certo charme. No entanto, talvez seja mais antigo do que o conceito de liberdade. Apareceu no século XIX, na literatura inglesa, no romance Ivanhoe (1819), de Sir Walter Scott, que descreve mercenários medievais como freelancers (guerreiros). Esses mercenários ofereciam suas lanças a quem pagasse. Eram os chamados lanceiros livres. Ou seja, pessoas sem lealdade fixa, mas especialistas em lanças, que vendiam sua força de trabalho de forma independente. Eram conhecidos como livres, isentos de servidão, e assim faziam uns trocados para tocar a vida como guerreiros.

Já nos séculos XX e XXI, o termo freelancer ganhou ar de modernidade e passou a designar profissionais liberais que atuam por conta própria, sem vínculo empregatício. Os sentidos de guerreiro, livre e isento de servidão foram reinsignificados. Mas não posso deixar de falar do modelo assalariado. Como conhecemos hoje, ele ganhou força com a Revolução Industrial, entre os séculos XVIII e XIX. Foi quando o trabalhador passou a vender seu tempo em troca de um salário, submetendo-se a horários fixos e estruturas hierárquicas severas. Ainda assim, o freelancer, mesmo como guerreiro, sempre transitou à margem desse sistema, equilibrando liberdade, vulnerabilidade e as incertezas de mercado.

Hoje, o glamour do freelancer parece ter diminuído. Ele continua existindo, mas o termo e a imagem se diluíram. Muitos profissionais atuam como freelancers, mas se apresentam como consultores, criadores de conteúdo, autônomos, parceiros ou prestadores de serviços. Poucos usam o termo freelancer como antes. E, enquanto isso, o trabalhador assalariado ganhou o título de colaborador, mas sua carga horária continua alta.

Ainda há o conceito de pejotização. O termo lembra “pejorativo”, que vem do latim pejorare (tornar pior), mas aqui se refere à famosa PJ, em que trabalhadores são cada vez mais contratados como pessoas jurídicas. Ou seja, uma nova forma ou categoria de freelancer.

Os freelancers, hoje, ocupam coworkings (espaços compartilhados de trabalho, onde diferentes profissionais e empresas dividem a mesma estrutura), trabalham em casa ou alugam salas por hora. Tudo isso para tentar manter uma rotina produtiva em tempos em que os conceitos de empreendedor e pejotização parecem substituir ou reinsignificar a ideia de trabalhador freelancer.

Com o passar do tempo, o empreendedor contemporâneo surge como um freelancer que vende ideias. Quer criar uma marca, lançar um produto, escalar um serviço, representar uma empresa ou até mesmo comprar uma moto, alugar um camelo e passar o dia fazendo entregas ou transportando pessoas. Muitas vezes, o empreendedor nem atua dentro da própria área de formação, quando a possui. É comum encontrar profissionais com diploma vendendo cosméticos, advogados tocando lojas virtuais ou franquias e professores qualificados que se tornam youtubers. Da mesma forma, existem trabalhadores de limpeza que são pejotizados, terceirizados com CLT ou sem CLT.

Alguns empreendedores têm diploma na área em que atuam, mas muitos buscam oportunidades fora da formação técnica, guiados pela intuição e pela demanda do mercado. Afinal, o mercado é o senhor que promete que nada faltará.

O freelancer clássico – profissionais liberais das classes média e alta, nesse cenário, ainda se apoia em uma profissão, em sua formação. O empreendedor aposta mais na reinvenção e nas oportunidades que o mercado oferece. Em comum, ambos buscam autonomia em um ambiente cada vez mais dominado por Big Techs, startups e fintechs. 

Tanto freelancers quanto empreendedores oscilam entre os riscos das ondas do mercado e uma economia que, paradoxalmente, busca se desvincular do Estado enquanto se concentra em grandes grupos econômicos que ditam o que se deve fazer e o que é certo. Caso o trabalhador não siga a bíblia do mercado, escrita pelos grandes grupos econômicos, pode ficar fora dos segmentos mais especializados ou ter que se virar para garantir o próprio sustento em outras áreas.

Portanto, pensar o futuro do freelancer, do empreendedor e do pejotizado exige reconhecer que eles se dividem, por assim dizer, em castas: alguns mais seguros em seus trabalhos e negócios, e outros mais vulneráveis à própria lei do mercado.

Voltando ao termo freelancer, que sempre me encantou. Há diferença entre freelancer, empreendedor e pejotizado, mas também há pontos de encontro: a ideia de ser dono do próprio tempo, de vender sua hora segundo suas próprias percepções de mundo, e a idealizada liberdade junto com o desafio de sobreviver com dignidade em um mundo líquido, em constante reinvenção. Mas talvez o pejotizado seja o mais prejudicado na seara trabalhista.

Contudo, as reinvenções nem sempre trazem benefícios para todos. E, como gosto de falar para minhas paredes e quando dou bom dia aos cavalos: as ações da sociedade não geram equilíbrio. Mas será que, em algum momento da humanidade, a sociedade vai agir para gerar equilíbrio? Não sei e acho pouco provável.

sábado, 9 de agosto de 2025

Autonomia na era da IA


Por Adu Verbis 

Ouvi alguém falar em autonomia e logo pensei sobre IA e ferramenta, e como fica a noção de autonomia na era da inteligência artificial. E, não obstante, cheguei à conclusão de que minha noção do que seja autonomia ainda está presa ao kantismo (filósofo Kant), que define autonomia como autolegislação racional-moral, aproximando a ideia de autonomia, de certa forma, à etimologia da palavra autonomia: autos – si mesmo, e nomos – lei.

Kant explora a autonomia dando um caráter universal e de independência, assim como explora os contextos políticos, de desejos e de autoridade, em seu complexo livro Metafísica dos Costumes. Mas a ideia de autonomia, com o passar dos tempos, vai além de Kant. O liberalismo, mesmo influenciado por ele (Kant), se desvia do pensamento kantista e veste a autonomia com uma roupa liberal, e foca na liberdade de escolha como mote para os direitos civis.

Portanto, com o liberalismo, autonomia passa a ser a capacidade de escolher seu próprio plano de vida. Isso mistura pluralismos e subjetividade, e os princípios universalistas – leis, ética e moral – ganham um foco mais personalista, o que parece até conferir um caráter absoluto ao personalismo.

Contudo, os séculos XX e XXI são acompanhados do conceito de autonomia relacional, em que a autonomia não é isolada, mas construída em relações e contextos. Ou seja, influências sociais e culturais, de certa forma, moldam a identidade, e entram nesse processo as escolhas possíveis de serem feitas. A autonomia passa a ser a capacidade de autodeterminação em interdependência, com seus subtópicos: bioética, direito e psicologia comportamental.

Vou passar o olho no dicionário para ver o que ele diz sobre autonomia. No dicionário, autonomia é s. f. – capacidade de governar-se pelos próprios meios; direito reconhecido a um país de se dirigir segundo suas próprias leis; direito de um indivíduo tomar decisões livremente; independência moral ou intelectual; ou o direito de reger-se segundo leis próprias.

Pois bem, quando penso em autonomia, tomo como referência um conceito amplo que busque unir diferentes tradições filosóficas. Portanto, vejo que a autonomia é a capacidade de autodeterminação construída a partir dos próprios valores e objetivos, considerando tanto as condições individuais quanto os contextos técnicos, sociais e culturais que influenciam nossas escolhas. Nesse sentido, ela nunca é absoluta, mas sempre envolve algum nível de relação e dependência de recursos e circunstâncias.

Contudo, não podemos deixar de lado as ferramentas da labuta. As ferramentas, nesse cenário, devem funcionar como meios para ampliar a autonomia. Vou usar o exemplo de ferramentas antigas, mas que ainda estão presentes em nosso dia a dia. O formão, o pincel ou a caneta Bic são exemplos de instrumentos que, por sua simplicidade e acesso direto, permitem que a criatividade e a técnica humana se manifestem sem grandes intermediários. Essas ferramentas exigem habilidade, prática e intenção. A realização obtida com seu uso decorre da relação direta entre gesto e resultado.

Não obstante, a inteligência artificial é também uma ferramenta, mas de natureza diferente. Sua sofisticação tecnológica permite ampliar nossas capacidades em áreas como criação artística, análise de dados e resolução de problemas complexos. Entretanto, por exigir infraestrutura avançada: energia, processamento, redes e manutenção constante, ela introduz um nível maior de mediação e dependência externa. Isso não significa que reduza necessariamente a autonomia, mas que a reconfigura: o usuário se torna coautor junto a um sistema cuja lógica e funcionamento influenciam o processo e o resultado. E nessa questão eu insiro minha dúvida: como será a noção de autonomia na era da inteligência artificial?

Mas vou fazer um meio campo e relativizar minha noção de autonomia, por eu achar um tanto purista. Assim, tanto ferramentas clássicas quanto a IA podem promover autonomia, mas em graus e formas distintas. Ferramentas simples oferecem autonomia mais direta e física; ferramentas tecnológicas complexas oferecem autonomia ampliada em alcance e escala, porém mais condicionada por estruturas externas. Em todos os casos, a autonomia é relacional, definida, por assim dizer, pelo equilíbrio entre as capacidades pessoais e os contextos técnicos, sociais e culturais que sustentam a ação.

Mas não posso passar pano quanto à questão que envolve poder, tanto no quesito autonomia quanto na utilização das ferramentas. Isso porque a existência de ferramentas marca e define o avanço civilizacional de um povo, o que o leva a uma autonomia. Os povos que não dominavam o ferro estiveram, historicamente, em desvantagem militar e econômica diante daqueles que dominavam sua forja. Por isso, a palavra ferramenta implica, ainda que nas entrelinhas, uma noção de poder, de progresso e de domínio tecnológico, cultural e civilizacional; e portanto, também, os conflitos de classes.

Hoje falamos de ferramentas digitais, ferramentas que processam ideias e outras tarefas. Esses desdobramentos conceituais das ferramentas digitais não negam o passado; ao contrário, edificam a antiga ideia de algo que permite realizar uma tarefa ou, mais profundamente, de instrumentalizar meios criativos ou de poder que ampliam a autonomia de um grupo que tem o domínio tecnológico. São ferramentas de poder que solidificam a autonomia de um grupo ou de uma nação.

No contexto de uma autonomia liberal, um escultor, com seu formão, pode trabalhar a madeira onde quer que esteja e queira estar. Um pintor, com seu pincel, pode criar livremente e fazer uma grande obra sem depender de energia elétrica, servidores ou algoritmos. E um escritor pode criar uma grande obra com uma caneta Bic.

Esses instrumentos clássicos pertencem ao mundo físico e simbólico, e são extensões diretas das mãos, pensamentos e habilidades humanas, sem a necessidade de uma infraestrutura racional, complexa e externa para funcionar de acordo com a capacidade técnica e intelectual de cada um. É ter condições e recursos para agir de acordo com valores e objetivos próprios. Nesse caso, a autonomia está presente.

Embora a IA muitas vezes seja eficiente, ela exige suporte tecnológico constante: eletricidade, processadores, dados armazenados em redes e acesso a sistemas que regulam sua própria funcionalidade, que dependem de todo um conjunto de processos técnicos, políticos e tecnológicos para funcionar. Além disso, afeta o meio ambiente, como no uso intensivo de água e suas consequências. Seu uso, portanto, nunca é totalmente independente, sem falar que também impacta o futuro em vários sentidos.

Com isso, não estou demonizando e dizendo que a IA não seja uma boa ferramenta, assim como o formão, a Bic e o pincel são. Porém, vejo que a IA pode limitar a autonomia e a percepção. Sendo um tanto simplista, vejo que o formão e o pincel, por exemplo, nos dão a sensação de que o trabalho é resultado direto da nossa habilidade, esforço e imaginação simbólica e criativa.

Já com a IA, vejo que parte do processo não é totalmente nossa. Quando criamos algo com valor técnico e criativo, isso envolve sonhos e desejos de realização, e a marca desses sonhos e desejos fica embrenhada no processo como um registro da própria existência. Penso que eles geram satisfação emocional por estarem integrados aos meios técnicos, à habilidade, à experiência de vida e também ao prazer da conquista artística e intelectual. É essa sensação de autonomia que a IA, em seu processo, não proporciona.