quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Autovoyerismo: a performance do eu e do si-mesmo



Por Adu Verbis

Eu sempre fico impressionado que, volta e meia, sou picado por uma mosca filosófica que se alimenta da minha percepção nada clara do mundo e, febril, começo a falar do ser humano como se fosse capaz disso e conhecesse de fato o ser humano. Mas, depois de tantas picadas da mosca filosófica, percebi que o que eu pensava, ou penso, sobre o ser humano é produto da minha imaginação e nunca chego perto do que de fato é o ser humano.

Penso que o ser humano, em sua essência e existencialidade, não é claro. E de certa forma, a cultura e as regras sociais buscam frear e não obstante aclarar a obscuridade humana e a complexidade das pulsões que impelam o ser aos processos de desejo e poder. O humano, como bom animal político que é, transforma sua animalidade em ato existencial de poder. Muitas vezes com arte e outras tantas de forma medíocre, perversa, cruel, com sentimentos ambíguos que mudam de acordo com o vento, as correntezas do tempo ou mesmo com as demandas do espírito do tempo.

Mesmo eu tendo dificuldades de entender como o ser humano, imerso em sua obscuridade e complexidade, funciona, não posso negar que existem doutores e estudiosos que especificam o que de fato é um ser humano. E, mesmo que não sejam capazes de clarificar todas as complexidades nem de dizer de onde o ser humano veio e para onde vai, ainda assim deixam pistas de como o ser humano é e funciona. Isso facilita para tipos como eu, que têm déficit de percepção quando o assunto é o ser humano.

E, contraditoriamente, apesar da minha incapacidade de ver o ser humano com clareza, fui mais uma vez picado pela mosca filosófica e vou falar do que não entendo. Mas vou falar, porque tenho necessidade de falar do que não entendo. Talvez isso seja um mal do meu tempo. Quero falar do que venho observando pelas gretas da realidade sintética. Quero falar do que chamo de autovoyerismo: a performance do eu e do si-mesmo. O eu e o si-mesmo são, por assim dizer, duas entidades em uma.

O eu como consciência imediata de si, ou, como diria Descartes, o “eu” como substância pensante. Já o si-mesmo parece mais complexo. Por exemplo, o filósofo Kierkegaard define o "si-mesmo" como síntese de infinitude. Enquanto Heidegger deixa tudo mais complexo, e o "si-mesmo" acaba sendo metáfora de um rio com duas correntezas em fluxos opostos. Uma correnteza que se chama "próprio" e a outra que se chama "impróprio", dentro de um contexto existencial.

Mas o que Heidegger quer dizer quando aproxima o "si-mesmo" de algo "próprio e impróprio"? Vou resumir e simplificar o si-mesmo heideggeriano desta forma: o "si-mesmo impróprio" é algo que vive no modo da impessoalidade, ou seja, alienado do que venha a ser singularidade própria. Contudo, o "si-mesmo próprio" seria então uma espécie de autenticidade, que assume a própria finitude e a responsabilidade pela própria existência.

Entretanto, a coisa não para por aí. Temos também o filósofo Paul Ricoeur, para quem o "si-mesmo" pode acabar sendo um trabalho em oposição ao "idem" – conceito de mesmidade. Para Ricoeur, o "si" indica a identidade narrativa, que se constrói no tempo e no espaço e está propenso a uma mera repetição de uma mesmidade.

Bem, vejo que a sociedade contemporânea, imersa na fantasia da visibilidade, criou um fenômeno paradoxal: o autovoyerismo. O indivíduo, em sua busca incessante por significado, tornou-se tanto espectador quanto ator de sua própria existencialidade. A visibilidade e o espetáculo não são fenômenos novos, porém vêm sendo potencializados, por assim dizer, na mesmidade individual ou coletiva, já citada por Paul Ricoeur.

Bem, quando o assunto é espetáculo, temos vários pensadores que abordaram o tema, mas, fora Guy Debord, que diagnosticou, na década de 60, a nova estrutura social da modernidade, que se pautou no espetáculo. A estrutura do espetáculo, com o passar do tempo, se transmutou em mil vertentes e hoje é multifacetada e mais betumizada, o que a torna mais difícil de ser compreendida pelas várias camadas, por assim dizer, de betume ontológico (isto é, referente à natureza do ser e da existência do espetáculo) – e epistemológico (ou seja, relativo às formas de conhecer, interpretar e produzir saber sobre o espetáculo) –, que a revestem, dando assim uma aura de que as coisas hoje são mais bem resolvidas quando o assunto é a especularização e sua mesmidade multifacetada. Em resumo, o espetáculo: se reinventa, se multiplica em formas diferentes e cria a impressão de transparência, quando na verdade se torna mais opaco e mais difícil de decifrar pela sua multifacetidade.

Mas afinal, o que seria o autovoyerismo? Para simplificar, posso dizer que o autovoyerismo tem semelhança com o que se chama de estética replicada: a reprodução sistemática de um estilo ou forma estética, onde se luta pela quebra de padrões e, não obstante, se replica um novo padrão. O autovoyerismo é uma forma de adequar uma autoimagem à realidade sintética (uma realidade construída ou mediada por aparências, imagens e representações, mais do que pela experiência direta). Contudo, a noção de autenticidade é diluída pelo próprio afã de autenticidade ou pelo que se chama de ser você mesmo dentro do escopo da mesmidade do espetáculo inserida no jogo da multifacetidade e da representação sociocultural.

Bem, voltando ao pensador Guy Debord, que diagnosticou a nova estrutura social da modernidade em seu trabalho A Sociedade do Espetáculo, pois, a sociedade do espetáculo se transmutou em mil vertentes. O sujeito não é mais um observador passivo do espetáculo. O sujeito agora se observa ativamente, reflete sobre si e, ao mesmo tempo, encena e molda a si mesmo, num eterno jogo de exibição dialética, dialógica e de autoavaliação retroalimentada. Ao mesmo tempo, se nega a ser julgado por outros, já que o seu olhar sobre si mesmo pauta o que ele é e como deve ser, ultrapassando a necessidade de uma avaliação externa, a não ser que seja uma avaliação que confirme o seu olhar sobre si mesmo.

E imerso no plasma digital, a performance do si-mesmo se amplifica, criando um ciclo vicioso e virtuoso que transborda da tela para a vida real. Esse vazamento plasmático do si-mesmo é o que define o que é verdade, já que a verdade passou a ser fruto de uma autoexpressão. E essa autoexpressão é essencialmente subjetiva, confeccionada de acordo com a própria fluidez do indivíduo na mesmidade do espírito do tempo. Este autovoyerismo, tal como o enxergo, tanto pode ser mero espetáculo ou uma consequência dele, ou parte de uma íntima construção estrutural resultado da tecno-organicidade que molda a identidade de um eu líquido à realidade sintética.

A vida já não transcorre apenas no espaço físico, mas dentro de camadas digitalmente fabricadas, uma segunda natureza plasmática onde a visibilidade oxigena as camadas existenciais dentro de bolhas sintéticas. Redes, plataformas, ambientes de transmissão: todo um ecossistema onde espectadores pagam os protagonistas e onde espectadores e protagonistas, de maneira imersiva, performam. Isso reflete como um espelho interacional, mas ao contrário do espelho do narcisista, que busca a representação da imagem perfeita, no espelho interacional do autovoyerismo não se busca a perfeição, mas o resultado performático do eu e do si-mesmo.

Tenho que voltar a Guy Debord, pois ele captou com precisão a dinâmica que se instaurou no âmago da modernidade. Ele apontava que a vida social não se organiza mais pela autenticidade da experiência, mas pela imagem, pela representação. Contudo, ele, de forma indireta, também fala da monetização da experiência. O indivíduo, em sua busca incessante por significado, ressignifica a capacidade de ser por si, tornando-se uma projeção mediada pelas imagens que cria e pela performance compartilhada e monetizada.

Portanto, essa busca pela visibilidade, que já foi diagnosticada por  Guy Debord como um espetáculo, ganha novas dimensões e compensações na era digital. Posso usar o mundo dos influenciadores como exemplo, mas exemplos não faltam para mostrar como o autovoyerismo se tornou uma prática muitas vezes doentia e também lucrativa. Cada gesto e cada postagem é parte de uma encenação cuidadosamente montada e ressignificada para atrair atenção, gerar engajamento por meio de marketing negativo e tantos outros métodos e, consequentemente, monetizar a visibilidade do si-mesmo numa retroalimentação infinita.

Por isso, a visibilidade deixa de ser apenas um reflexo da sociedade do espetáculo e se transforma em uma fonte simbólica de valores individualizados que buscam balizar a representação. Influenciadores e subcelebridades vivem do espetáculo que criam, transformando o autovoyerismo em uma máquina de gerar lucro e manipulação política na adulteração de fatos. Ao mesmo tempo, constroem existências em uma realidade sintética, onde a fronteira entre o vivido e o encenado é o mote da verdade. O que importa é o poste dentro do contexto do influenciador e assim alimentar a máquina de monetização e de política que pulveriza ou centraliza certos assuntos.

O autovoyerismo se manifesta na busca constante por validação. O like tem um valor compensatório, muitas vezes com uma dimensão ideologicamente predatória, que se torna o prêmio pela exibição do si-mesmo. A satisfação é conquistada no instante do like que visibiliza. Para muitos, o número de interações nas redes sociais, as curtidas, os comentários e as visualizações passa a ser o indicador de autoestima. É uma forma de medir um valor e a presença no mundo sintético, o que gera conforto emocional e a possibilidade de aumentar o número de seguidores e também possíveis retornos financeiros e político.

Assim, o sujeito não apenas observa sua própria imagem, mas a alimenta com a expectativa de uma recompensa, seja monetária, emocional ou de forma política. Nesse ciclo, o autovoyerismo precisa de uma retroalimentação replicada para não deixar o ciclo do espetáculo morrer, como se fosse uma permutação cíclica. Aqui, a realidade sintética da validação digital substitui a experiência direta de reconhecimento humano. Já não importa tanto ser, mas sim ser visto no espaço sintético da permutação circular do si-mesmo, que opera como a nova praça pública onde o autovoyerismo se alimenta, numa espécie de autovoyerismo socializado.

Não podemos também esquecer do pensador francês Jean Baudrillard, que navegou por essas águas turvas do simulacro. O simulacro é a imagem, signo ou representação que não remete mais a uma realidade original. Suas confecções existenciais trazem uma reflexão adicional ao discutir a sociedade e a noção de hiper-realidade. A hiper-realidade é a condição ou estado cultural em que vivemos imersos em simulacros, a ponto de não conseguirmos mais distinguir o que é real e o que é representação. Se para Debord o espetáculo é a imagem que separa o sujeito da experiência verdadeira, para Baudrillard a realidade tornou-se substituída por suas representações.

Já não vivemos a realidade como animais, mas como seres digitais, memes de si mesmos, imersos numa representação social digital, onde o jogo político é constantemente alterado e falseado, e as leis são interpretadas de acordo com a autoexpressão. O sujeito, ao consumir imagens de si mesmo ou ao produzir essas imagens, não está mais engajado em representar algo real, mas cria uma nova realidade para si, uma que se reflete nas telas e nas redes sociais. Essa simulação sustenta o autovoyerismo e alimenta a própria realidade sintética da subjetividade, onde o eu se constitui, em termos de poder, a partir de algoritmos, filtros, métricas e imagens processadas numa estética replicada, em busca de uma institucionalidade de si mesmo.

Podemos também explorar a ideia de present shock, de Douglas Rushkoff, que talvez revele uma característica fundamental do mundo atual: a incapacidade de desacelerar e refletir, uma vez que o presente é engolido pela constante demanda por visibilidade. Pois o termo Present Shock, do pensador da mídia Douglas Rushkoff, vem do livro Present Shock: When Everything Happens Now (2013) – Choque do Presente: quando tudo acontece agora.

Douglas Rushkoff busca descrever a condição cultural contemporânea em que deixamos de estar voltados para o passado (história) ou para o futuro (progresso) e passamos a viver em um estado permanente de presente imediato, ditado pelo ritmo acelerado das tecnologias digitais. Esse ritmo elimina o passado e, paradoxalmente, rouba o futuro ou propõe um futuro no qual não escolhemos entrar e do qual não temos opção de sair.

As tecnologias digitais, ao criarem uma sobrecarga de informação e um fluxo interminável de estímulos, forçam o sujeito a viver no agora eterno. O presente já não é um momento fugaz, mas uma performance contínua, onde o sujeito deve estar sempre presente, sempre reagindo e sempre sendo visto, já que o palco funciona 24/7.

Não há tempo para processar no sentido de purificação, mas apenas para remasterizar o eu e o si-mesmo, e os exibi-los na realidade sintética. Esse presente contínuo se converte em uma temporalidade sintética, na qual o agora não se dá como experiência, mas como atualização incessante do autovoyerismo imerso no si-mesmo.

É nesse cenário, entre os ecos de Descartes, Kiekegaard, Heidegger, Debord, Ricoeur, Baudrillard e Rushkoff, que o conceito de autovoyerismo pode ganhar algum sentido e, por assim dizer, se tornar mais claro quanto à performance do eu e do si-mesmo. O sujeito contemporâneo não apenas é obcecado por si mesmo, mas se desafia a ser visto, a se representar para uma audiência invisível, porém onipresente. Em um mundo saturado e performático, a identidade, que nunca foi algo claro para o sujeito, acaba tornando-se hiperinternizada e é moldada na tecno-organicidade, constantemente ajustada ao olhar desejoso do outro e de si mesmo.

Em uma sociedade onde as imagens dominam a experiência humana, o autovoyerismo se torna o reflexo de uma vida encenada para si mesmo, onde a ideia de autenticidade é um conceito vago e a subjetividade se dissolve em sua própria hiperinternalização. O sujeito se observa não para se entender, mas para ser visto como algo autêntico dentro da estética replicada, um sistema estético já estabelecido e continuamente reproduzido. E nesse auto-olhar, ocorre a desconstrução e a ressignificação do si-mesmo em uma mercadoria conceitual, onde o sujeito é simultaneamente autor, produto e consumidor de si mesmo.

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