terça-feira, 28 de outubro de 2025

Por que Israel é uma Teocracia Liberal e não uma Democracia Plena




Por Adu Verbis

Sento-me à minha mesa, o ecrã do notebook iluminando meu rosto, enquanto o mapa da Palestina ocupada se espalha diante de mim na tela. As fronteiras, as cidades, os desertos e os mares – tudo conta uma história antiga, mas ao mesmo tempo muito contemporânea, pelos assentamentos israelenses que fragmentam a Palestina. Israel vai tomando os territórios palestinos como água correndo nos sulcos da terra. Mas aqui vou focar minha lupa no Estado de Israel e no seu sistema político. Ao estudar este país, percebo que, embora muitos o considerem uma democracia, ele carrega marcas profundas de outra lógica política, que eu chamo de teocracia liberal.

Quando ouvimos o termo “democracia”, imaginamos eleições livres, liberdade de expressão, direitos iguais para todos e uma clara separação entre Estado e religião. Israel, à primeira vista, parece atender a muitos desses critérios: a Knesset é eleita, a imprensa é livre, partidos diversos competem pelo poder e a economia segue princípios liberais de mercado.

No entanto, à medida que mergulho na realidade cotidiana do sistema político de Israel, percebo que a liberdade tem limites cuidadosamente delimitados pela religião. Até poderia dizer que Israel é uma democracia iliberal, mas prefiro o termo teocracia liberal, pois se adequa melhor ao sistema teopolítico do país. A vida dos cidadãos ainda é profundamente afetada por regras religiosas, mostrando que a liberdade formal nem sempre se traduz em liberdade real ou numa democracia plena.

O primeiro sinal da fusão entre teologia e liberalismo está nos tribunais rabínicos e nas instituições liberais. Refletindo sobre isso, leio sobre casamentos e divórcios: para os judeus, apenas o tribunal rabínico tem autoridade. Não existe casamento civil tradicional dentro do país. Quem deseja contornar a regra precisa encontrar um jeito. Esse é apenas um exemplo. As leis de status pessoal, que incluem conversão, sepultamento e outros ritos, estão profundamente entrelaçadas com a Halachá, a lei judaica. E não são apenas os judeus que são afetados; muçulmanos, cristãos e drusos também têm seus próprios tribunais religiosos reconhecidos pelo Estado, nessa fusão entre teologia e liberalismo.

A Lei do Estado-Nação Judaico, aprovada em 2018, reforça ainda mais a realidade da teocracia liberal. Israel não se define apenas como Estado de seus cidadãos, mas explicitamente como Estado judeu, concedendo prioridade à identidade religiosa sobre a igualdade formal. É aqui que o conceito de teocracia liberal se revela: o país mantém instituições liberais e democráticas, mas a religião não é apenas simbólica. Ela molda políticas públicas, define quem pode se casar e influencia diretamente o pertencimento nacional.

Há mudanças recentes que indicam sinais de flexibilização. Em 2023, o Supremo Tribunal de Israel determinou que o Ministério do Interior reconheça casamentos civis realizados online via jurisdição de Utah, nos EUA. Além disso, Israel reconhece casamentos entre pessoas do mesmo sexo realizados no exterior. Esses avanços não eliminam a autoridade religiosa, mas mostram que o Estado está gradualmente adaptando suas regras às demandas da modernidade e da diversidade social. Ainda assim, casamentos civis dentro de Israel permanecem impossíveis, e a jurisdição dos tribunais religiosos continua determinante para a maioria das uniões.

Ao refletir sobre isso, percebo que não se trata de um equilíbrio espontâneo, mas de um pacto histórico. Desde a fundação do Estado, Ben-Gurion e os líderes religiosos negociaram o chamado “status quo”. Ou seja, a liberdade civil e o funcionamento democrático coexistem com a autoridade religiosa sobre a vida pessoal. É um arranjo que exige consentimento tácito da população, que, em sua maioria, aceita essas regras como parte do contrato social para manter Israel como um Estado judeu.

Portanto, quando alguém descreve Israel como uma democracia plena, sinto que há uma simplificação e certa ingenuidade. Sim, há liberdade de imprensa, eleições livres e um sistema judicial independente. Mas, no núcleo, as decisões mais íntimas da vida das pessoas – casamento, divórcio, sepultamento – não são determinadas por lei civil, e sim por instituições religiosas, que seguem as leis religiosas, ainda que parcialmente complementadas por avanços recentes em reconhecimento civil. Esse é o traço central da teocracia liberal que menciono, um conceito que ajuda a entender a singularidade do Estado de Israel: uma democracia com estrutura liberal na superfície, mas que incorpora a religião como pilar estrutural da sociedade.

Ao acabar o texto, olho novamente para o mapa da Palestina no ecrã e percebo que compreender Israel exige aceitar essa dualidade: uma teocracia que se veste de liberal, oferecendo liberdade e democracia dentro de fronteiras cuidadosamente desenhadas por tradições religiosas, e agora, lentamente, permitindo pequenas brechas civis que indicam um Estado em transição. 

Ao mesmo tempo, entendo que essa coexistência também carrega os limites de uma democracia iliberal, onde instituições democráticas existem, mas os resultados práticos ainda não garantem plena liberdade e igualdade para todos. Não acredito em democracia absoluta, mas aqui acentuo e aponto que Israel, em sua essência política, é uma teocracia liberal. Israel se apresenta como democracia, mas sua essência política depende da religião, sem ela, o Estado judeu simplesmente não existiria.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Jacó/Israel: Ambição e Medo – A Construção de uma Entidade Espiritual



Por Adu Verbis

Quando penso na Bíblia, sempre penso como um mapa dialógico. E pensar a Bíblia como um mapa dialógico é vê-la como um espaço de encontro e desencontro. Entre o que o ser humano chama de Deus e o ser humano, entre o passado da humanidade e seu presente, entre textos ditos e interpretações que conduzem por caminhos nem sempre claros. A Bíblia talvez seja o espaço onde o ser humano sonha coletivamente e guarda as múltiplas vozes que constroem sentido em contexto com o que se chama fé e devoção. Portanto, o assunto aqui não é bem a Bíblia em sua integralidade, mas uma parte dela. Passei dias estudando quem foi Jacó e por que Jacó passa a se tornar Israel.

Jacó, figura central da narrativa bíblica, é frequentemente retratado como astuto, ambicioso e moralmente ambíguo. A transformação de Jacó em Israel não é apenas narrativa histórica ou mitológica; ela pode ser interpretada como processo psíquico profundo, refletindo o conflito entre medo, desejo de controle e busca de significado espiritual. Este texto propõe que o “nascimento” de Israel como entidade espiritual emerge das consequências traumáticas da vida de Jacó, configurando uma psique coletiva que se manifesta no povo israelita, em sua versão bíblica, que espelha a versão humana. Além disso, comparações com mitos de outras culturas ajudam a contextualizar e a entender os padrões psicológicos universais de luta, ambição e transformação.

Jacó apresenta padrões de comportamento marcados por insegurança e ambição. Família e rivalidade: o favoritismo parental e a competição com Esaú criam um trauma de rejeição e inferioridade, reforçando conflitos. Fuga e alienação de Jacó: ao fugir para Harã, ele enfrenta o medo da perseguição e a incerteza da sobrevivência. Nesse caso, há ligações com o mito universal de Rômulo e Remo.

Mas qual o propósito do filho (Jacó) astuto, marginalizado e em conflito com o irmão (Esaú)? O conflito entre irmãos é recorrente em muitas culturas, como, por exemplo, Rômulo e Remo em Roma ou Édipo na Grécia, mostrando padrões arquetípicos de rivalidade fraterna que levam a guerras por espaços simbólicos. O conflito entre Jacó e Esaú é embrionário; ou seja, como gêmeos, eles lutam por uma bênção. Podemos pensar que Esaú era o “calcanhar de Aquiles” de Jacó, mas foi Jacó quem nasceu segurando o calcanhar de Esaú, tentando impedir que o irmão nascesse primeiro e ganhasse o status de primogênito e assim a bênção.

Nesse ponto, a leitura simbólica encontra eco na psicanálise: Freud interpretaria esses eventos como expressão de complexo de inferioridade e conflitos edipianos. O trauma de Jacó em relação a Esaú e Isaque reflete desejos inconscientes reprimidos, que se expressam através de manipulação, ambição e superação. Já Lacan poderia analisar Jacó como alguém em busca do “Nome-do-Pai”, estruturando sua identidade através da apropriação simbólica da bênção roubada, refletindo a tensão entre realidade, desejo e lei simbólica, e ser um escolhido e amado pelo pai biológico, simbólico e espiritual. Essa tríade fundamenta, na narrativa bíblica, uma entidade espiritual que, simbolicamente, os israelitas projetam como núcleo de sua existência no mundo.

Contudo, Erich Fromm veria a ambição de Jacó como expressão de desejo de poder e segurança em um ambiente hostil, mostrando como traumas podem moldar a psique para criar estratégias de sobrevivência na aridez do mundo.

A ambição de Jacó funciona como defesa psíquica diante da insegurança e do medo: roubar a bênção de Esaú evidencia desejo de controle e autoafirmação. A ambição se torna mecanismo adaptativo, protegendo a psique contra traumas de rejeição e ameaças externas. Essa dinâmica é similar a arquétipos mitológicos, como a figura do herói que precisa superar obstáculos morais e físicos para transformar sua identidade por meio de uma jornada. Jung consideraria essa ambição parte do processo de individuação, em que Jacó precisa integrar aspectos reprimidos da personalidade para emergir como Israel, pessoa e símbolo espiritual.

É na luta com Deus que Jacó encontra seu mote como herói que tem que cumprir uma jornada. Ao mesmo tempo, essa narrativa poética reflete um processo psíquico profundo: no episódio da luta noturna (Gênesis 32:22-32), Jung interpretaria o confronto com a própria sombra, enfrentando aspectos reprimidos como medo, egoísmo e insegurança. A mudança de nome de Jacó para Israel simboliza a integração da psique: ambição e medo são transformados em propósito espiritual, de modo que o propósito espiritual o levasse a uma aceitação e a um acolhimento por seu Deus, que o experimenta em seu propósito espiritual.

Não podemos esquecer que há comparações mitológicas na jornada de Jacó: a luta simbólica com o divino ou com forças superiores aparece em diversas culturas, como Hércules enfrentando desafios impossíveis ou Moisés confrontando o Faraó, representando a tensão entre humano, medo e transcendência. Ricoeur poderia interpretar a jornada de Jacó como formação de identidade através da memória e narrativa coletiva, transformando experiências traumáticas individuais em símbolos culturais duradouros.

Israel, como resultado da transformação de Jacó, apresenta a consciência do conflito humano com o divino e o reconhecimento da tensão entre desejo pessoal e coletivo, e ética pessoal e coletiva. Por isso, a transformação de trauma em missão: experiências traumáticas individuais são incorporadas à psique coletiva do povo que descende de Israel (Israel, o personagem bíblico e não o Estado de Israel), moldando assim resiliência, ética e a identidade de um povo que cultua a superioridade espiritual por ter uma jornada divina. Contudo, a gênese da ambição de Jacó é equilibrada pelo medo: o medo é um mote e é canalizado em disciplina e propósito espiritual.

Podemos expandir a perspectiva psicanalítica do mito, do personagem, do ser humano Jacó/Israel. Na visão de Freud, Jacó/Israel pode representar a tensão entre id, ego e superego, onde ambição e desejo são regulados por experiências traumáticas. Enquanto que para Jung, Israel pode simbolizar individuação e integração da sombra. Da mesma forma que para Lacan, a luta de Jacó representaria o confronto com a lei simbólica do pai, Isaque, que também tinha conflito com o pai Abraão (o Deus do avô de Jacó, Abraão, ordena que o avô sacrifique o filho Isaque, pai de Jacó). Do mesmo modo, podemos pensar que Jacó inconscientemente herda os traumas de seu pai, Isaque, que vive um processo traumático ao ser quase sacrificado pela fé e devoção de Abraão a seu deus.

Portanto, é no confronto que há a busca por identidade, no campo do desejo e na ambição por uma autoafirmação, desde Abraão a Israel. Da mesma maneira, Fromm veria que ambição e sobrevivência refletem a psique moldada por forças sociais e familiares. E Ricoeur focaria que a narrativa e o mito transformam traumas individuais em identidade coletiva. É no trauma e no conflito entre humano e divindade que a família de Jacó, desde Abraão, passa a construir uma entidade espiritual, como diria Jung, feita de sombra.

Para não me alongar no texto, vamos fechar a jornada. A trajetória de Jacó para Israel exemplifica como trauma, ambição e medo podem catalisar a formação de identidade espiritual coletiva. Israel nasce não apenas como descendência física, mas como entidade psíquica e simbólica, cuja força emerge da superação de conflitos internos profundos. Comparações com outros mitos e análise psicanalítica podem mostrar que a espiritualidade e identidade de um povo podem emergir diretamente das experiências traumáticas de seus ancestrais, integradas à narrativa mítica, à consciência coletiva e à transformação psíquica, e nessa transformação o estabelecimento de uma concepção que molda a humanidade, e portanto, a força psíquica não está na luz, mas sim na sombra.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

SUPURAR – A Poesia como Infecção da Alma

https://www.amazon.com.br/dp/B0FTZDYJ57


E se a poesia fosse uma ferida aberta?


Em SUPURAR – A Poesia como Infecção da Alma, Adu Verbis transforma dor, insônia e lucidez em arte. Cada poema é uma secreção do espírito, o resultado febril de uma mente que pensa o corpo e sente o tempo.


Escrito como uma longa madrugada poética, SUPURAR conduz o leitor por um fluxo intenso de imagens, reflexões e sensações. A palavra se torna um bisturi; o verso, cicatrizAqui não há espaço para a leveza. O que pulsa é a verdade crua da existência, o desconforto, o prazer e a beleza que brotam com o passar das horas.


Por que ler este livro?

Porque a poesia aqui não quer ser bela, quer ser real.
Porque cada poema te obriga a sentir, e não apenas a entender o sentido da vida.
Porque SUPURAR é um espelho do que há de mais humano: o sofrimento que insiste em criar sentido.

Um livro para leitores de Hilda Hilst, Augusto dos Anjos, Piva, Ana Cristina Cesar, e também para quem acredita que a poesia é um corpo vivo.


“A poesia não cura. Ela supura.”