Por Adu Verbis
Sento-me à minha mesa, o ecrã do notebook iluminando meu rosto, enquanto o mapa da Palestina ocupada se espalha diante de mim na tela. As fronteiras, as cidades, os desertos e os mares – tudo conta uma história antiga, mas ao mesmo tempo muito contemporânea, pelos assentamentos israelenses que fragmentam a Palestina. Israel vai tomando os territórios palestinos como água correndo nos sulcos da terra. Mas aqui vou focar minha lupa no Estado de Israel e no seu sistema político. Ao estudar este país, percebo que, embora muitos o considerem uma democracia, ele carrega marcas profundas de outra lógica política, que eu chamo de teocracia liberal.
Quando ouvimos o termo “democracia”, imaginamos eleições livres, liberdade de expressão, direitos iguais para todos e uma clara separação entre Estado e religião. Israel, à primeira vista, parece atender a muitos desses critérios: a Knesset é eleita, a imprensa é livre, partidos diversos competem pelo poder e a economia segue princípios liberais de mercado.
No entanto, à medida que mergulho na realidade cotidiana do sistema político de Israel, percebo que a liberdade tem limites cuidadosamente delimitados pela religião. Até poderia dizer que Israel é uma democracia iliberal, mas prefiro o termo teocracia liberal, pois se adequa melhor ao sistema teopolítico do país. A vida dos cidadãos ainda é profundamente afetada por regras religiosas, mostrando que a liberdade formal nem sempre se traduz em liberdade real ou numa democracia plena.
O primeiro sinal da fusão entre teologia e liberalismo está nos tribunais rabínicos e nas instituições liberais. Refletindo sobre isso, leio sobre casamentos e divórcios: para os judeus, apenas o tribunal rabínico tem autoridade. Não existe casamento civil tradicional dentro do país. Quem deseja contornar a regra precisa encontrar um jeito. Esse é apenas um exemplo. As leis de status pessoal, que incluem conversão, sepultamento e outros ritos, estão profundamente entrelaçadas com a Halachá, a lei judaica. E não são apenas os judeus que são afetados; muçulmanos, cristãos e drusos também têm seus próprios tribunais religiosos reconhecidos pelo Estado, nessa fusão entre teologia e liberalismo.
A Lei do Estado-Nação Judaico, aprovada em 2018, reforça ainda mais a realidade da teocracia liberal. Israel não se define apenas como Estado de seus cidadãos, mas explicitamente como Estado judeu, concedendo prioridade à identidade religiosa sobre a igualdade formal. É aqui que o conceito de teocracia liberal se revela: o país mantém instituições liberais e democráticas, mas a religião não é apenas simbólica. Ela molda políticas públicas, define quem pode se casar e influencia diretamente o pertencimento nacional.
Há mudanças recentes que indicam sinais de flexibilização. Em 2023, o Supremo Tribunal de Israel determinou que o Ministério do Interior reconheça casamentos civis realizados online via jurisdição de Utah, nos EUA. Além disso, Israel reconhece casamentos entre pessoas do mesmo sexo realizados no exterior. Esses avanços não eliminam a autoridade religiosa, mas mostram que o Estado está gradualmente adaptando suas regras às demandas da modernidade e da diversidade social. Ainda assim, casamentos civis dentro de Israel permanecem impossíveis, e a jurisdição dos tribunais religiosos continua determinante para a maioria das uniões.
Ao refletir sobre isso, percebo que não se trata de um equilíbrio espontâneo, mas de um pacto histórico. Desde a fundação do Estado, Ben-Gurion e os líderes religiosos negociaram o chamado “status quo”. Ou seja, a liberdade civil e o funcionamento democrático coexistem com a autoridade religiosa sobre a vida pessoal. É um arranjo que exige consentimento tácito da população, que, em sua maioria, aceita essas regras como parte do contrato social para manter Israel como um Estado judeu.
Portanto, quando alguém descreve Israel como uma democracia plena, sinto que há uma simplificação e certa ingenuidade. Sim, há liberdade de imprensa, eleições livres e um sistema judicial independente. Mas, no núcleo, as decisões mais íntimas da vida das pessoas – casamento, divórcio, sepultamento – não são determinadas por lei civil, e sim por instituições religiosas, que seguem as leis religiosas, ainda que parcialmente complementadas por avanços recentes em reconhecimento civil. Esse é o traço central da teocracia liberal que menciono, um conceito que ajuda a entender a singularidade do Estado de Israel: uma democracia com estrutura liberal na superfície, mas que incorpora a religião como pilar estrutural da sociedade.
Ao acabar o texto, olho novamente para o mapa da Palestina no ecrã e percebo que compreender Israel exige aceitar essa dualidade: uma teocracia que se veste de liberal, oferecendo liberdade e democracia dentro de fronteiras cuidadosamente desenhadas por tradições religiosas, e agora, lentamente, permitindo pequenas brechas civis que indicam um Estado em transição.
Ao mesmo tempo, entendo que essa coexistência também carrega os limites de uma democracia iliberal, onde instituições democráticas existem, mas os resultados práticos ainda não garantem plena liberdade e igualdade para todos. Não acredito em democracia absoluta, mas aqui acentuo e aponto que Israel, em sua essência política, é uma teocracia liberal. Israel se apresenta como democracia, mas sua essência política depende da religião, sem ela, o Estado judeu simplesmente não existiria.

