Por Adu Verbis
Imagem: Identidade Roubada
Vamos começar explicando o que o subtítulo “O Canibalismo Cultural” pretende exemplificar no contexto da narrativa apresentada. O conceito de canibalismo cultural está aberto a interpretações, e é isso que procuro abordar.
A expressão canibalismo cultural, no discurso do texto, se refere ao que se apropria – tomar para si – e, a partir dessa apropriação, se estrutura a manutenção cultural. A ideia de cultura genuína, a meu ver, é mais uma questão de doutrinação, que busca a primazia de uma pureza cultural.
O que quero dizer é que não existe uma cultura universal que esteja acima das demais. Os processos culturais se desenvolvem a partir de apropriações simbólicas simultâneas entre culturas, e toda cultura se estrutura por meio de estatutos simbólicos.
Neste processo de operar por intermédio de símbolos, é possível encontrar conteúdos simbólicos de uma cultura em outra. Portanto, parto do ponto de vista de que não existe cultura genuína, mas sim a doutrinação de conteúdos simbólicos com interpretações distintas, o que dissolve a ideia de uma cultura genuína.
Vou resumir a ideia de apropriação com uma metáfora simples, embora o simples, muitas vezes, diga algo que faz sentido. Ao transformar a imagem de uma águia em símbolo do meu estandarte subjetivo e do meu patrimônio cultural, estou me apropriando dos elementos que compõem a águia, em seu estado natural, para exemplificar meu poder simbólico.
Dito isso, vamos ao propósito deste texto, que é discutir o canibalismo cultural do homem branco e do homem negro, suas causas e efeitos históricos. Começo com uma pergunta: o que é ser afro-americano ou afro-brasileiro?
Ao perguntar o que é ser afro-americano ou afro-brasileiro, posso estar sendo estúpido, e a questão pode parecer tola do ponto de vista antropológico. Mas é importante fazer essa pergunta, mesmo que soe tola. Ela é essencial, pois é a que fundamenta o discurso do texto.
O termo afro-americano, ou afro-brasileiro, se estrutura a partir de elementos simbólicos e seus padrões comparativos: cor da pele, modo de ser, paladar, música, entre outros. Por isso, devemos entender que o termo afro-americano, com sua desinência nominal, por si só, já responde à pergunta sobre o que é ser afro-americano ou afro-brasileiro.
Contudo, faço a pergunta para contextualizar o advento das leis discriminatórias nos EUA – 1890 – e o que significa ser branco nos EUA. Ser branco nos EUA sempre foi pautado no anglo-saxão e no protestantismo. A dúvida que me surge ao fazer essa pergunta é se o termo afro-americano surgiu como uma forma nominal para justificar a escravidão e a discriminação, ou se surgiu como uma forma preposicional para reparar injustiças.
Vejo que o termo afro-americano surgiu por meio do que ficou conhecido como a “regra de uma gota”, que define que qualquer pessoa com ancestralidade africana é negra. A ideia de resgatar a ancestralidade africana para definir quem é negro e quem não é negro parece bem-intencionada e busca a construção de um estado de consciência, que podemos chamar de pertencimento.
No entanto, essa mesma ideia, ou a “regra de uma cota”, alimenta ainda mais a discussão sobre raça. A ideia de raça dá ênfase às características biológicas, e não à etnicidade – à consciência de pertencimento, construída por meio de elementos simbólicos. Pois é através das características do negro africano que se define quem é negro e quem não é negro.
Entretanto, sendo irônico, pergunto: alguém consultou os nativos africanos sobre o que achavam de serem considerados negros, apenas pela cor da pele, sem levar em conta a subjetividade étnica e toda a carga simbólica que estrutura a consciência de pertencimento dos grupos étnicos?
É evidente que os nativos africanos não foram consultados sobre o que é ser negro; eles foram denominados pela cor da pele. Para os povos africanos, as questões étnicas sempre tiveram mais importância. E a genética mostra que a cor da pele por si só não fala nada.
Além disso, a “regra de uma cota” reforça a ideia de quem é branco e quem é negro, estabelecendo, juridicamente, quem é negro e quem é branco. Ao criar o termo afro-americano, com base na ancestralidade africana, de certa forma, busca-se a primazia da representação branca e negra, mediada pelo atavismo que formata características.
Ao cunhar o termo afro-americano e afro-brasileiro, por mais que tenha boas intenções, reforça-se a premissa de raça negra e raça branca e, sutilmente, a premissa de um poder racial sobre o outro. O cognato afro-americano e afro-brasileiro também serve para designar a pátria a que se pertence.
Vejo que, no Brasil, se tomarmos a genética como base para estabelecer a “regra de uma cota”, podemos dizer que, perante a genética, a maioria dos brasileiros são afrodescendentes. Portanto, a cota no Brasil serve para reparar injustiças sociais.
Enquanto a descendência negra ganha força política entre aqueles que têm a coragem de se assumir como negros, sendo usada como ponto de partida para discussões sobre direitos e reparações pelos danos causados pela escravidão, acredito que, tanto nos EUA quanto no Brasil, os termos afro-americano e afro-brasileiro abrem a discussão sobre a crença no norte-americano “puro” e no "não puro". E, no caso dos EUA, o norte-americano puro é o branco e não o negro, estabelecendo assim a base para o preconceito e o racismo.
Por isso, pergunto: por que um norte-americano branco, com antepassados italianos, irlandeses ou britânicos, é sempre chamado de americano e não de italo-americano, anglo-americano ou irish-americano? Parece uma pergunta boba, mas não é.
Podemos concluir que não se chama um branco de italo-americano ou anglo-americano porque ele é branco, e ser branco confere status jurídico. Por ser branco, nunca ouvimos alguém falar de ítalo-americano, irish-americano, na mesma proporção em que ouvimos falar de afro-americano, como se a Guerra da Secessão, entre o Sul e o Norte, não tivesse sido vencida e cada um devesse permanecer em seu lugar, conforme estabelecido pela “regra de uma cota”.
O negro nascido nos EUA é chamado de afro-americano, tendo sua ancestralidade como referência, o que dá a entender que o negro americano é um grupo étnico-racial distinto, e não um americano da mesma maneira que o americano branco.
Vamos ser de boa-fé e afirmar que não seja discriminatório o fato de ouvirmos o termo afro-americano, e não irish-americano, italo-americano, anglo-americano, para o norte-americano branco, na mesma proporção em que ouvimos quando nos referimos ao norte-americano negro. Se o que define ser negro é a ancestralidade africana, essa regra também deveria fazer sentido quando falamos do branco.
Contudo, ao ver um negro na América do Norte, imediatamente pensamos em seus antepassados africanos e dizemos que ele é um afro-americano; muitas vezes, definimos um negro como afro-americano, sem saber sequer se ele é norte-americano. Porém, ao ver um branco, não pensamos em seus antepassados.
O fato de sempre categorizar um negro como afro-americano ou afro-brasileiro revela vestígios discriminatórios, resultado da “regra de uma cota”. Um negro é sempre um afro-americano, enquanto um branco é sempre um americano ou europeu, pois se pressupõe que o status jurídico vale mais que a ancestralidade, e a ancestralidade branca se fortalece por meio do status jurídico.
A meu ver, o termo afro-americano sustenta a ideia de que o norte-americano “puro” é o branco. O termo afro-americano ou afro-brasileiro, baseado na ancestralidade, só tem validade para o negro. E no caso do Brasil, a genética mostra que tanto o negro quanto o branco têm uma carga genética africana semelhante.
Embora a referência para definir quem é negro seja a ancestralidade africana, essa referência ancestral é baseada exclusivamente na cor da pele e não nos genes. Assim, podemos dizer que a ancestralidade africana acaba sendo vista dentro de um contexto divisionista, racista, definido por meio de preconceitos.
Insisto na ideia de que o que somos acaba sendo definido pela cor da pele, como exemplo os povos que habitavam o continente que foi denominado Novo Mundo, ou seja, o Continente Americano. Antes da chegada dos europeus, os povos do Continente Americano não se viam como norte-americanos ou sul-americanos. O termo norte-americano ou americano chega junto com os europeus, construído a partir da branquitude, que se considera superior por ser branca.
Os negros que chegaram ao Novo Mundo foram tratados como escravos de origem africana, e os povos nativos, que habitavam as terras conquistadas pelo colonizador, como indígenas. A América só passou a existir quando o cartógrafo alemão Martin Waldseemüller a denominou, em 1507, ou quando o europeu a colonizou.
Mas também podemos considerar que o termo "americano", que define o povo norte-americano, de certa forma, surge com a independência em 4 de julho de 1776; e não obstante, os heróis dessa independência são brancos, com figuras como George Washington e outros tantos como representantes dessa branquitude.
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