A Argentina, que normalmente é associada à imigração europeia e à identidade branca, carrega uma história negra que é invisível e muitas vezes negligenciada nos relatos oficiais do país. A presença de afrodescendentes no país foi importante nos primeiros séculos da colonização, mas foi gradualmente reduzida por uma série de fatores históricos, sociais e políticos. Esse apagamento também foi refletido no futebol argentino, onde, ao longo da história, poucos jogadores negros se destacaram e no esporte em geral.
O futebol, sendo o esporte popular na Argentina, teria tudo para ter mais negros representando a seleção, mas isso nunca aconteceu. O exemplo mais conhecido de um jogador de ascendência africana foi o goleiro Héctor Baley, que fez parte do elenco campeão da Copa do Mundo de 1978, embora não tenha sido titular.
Na Argentina, o termo "morocho" é comumente usado para descrever pessoas de pele escura, mas sem uma identificação explícita como negras. Maradona, por exemplo, tinha características que poderiam ser associadas ao termo "morocho" – como pele morena e um semblante que, em certos contextos, poderia ser relacionado a essa classificação popular – mas, por se tornar um ídolo, o termo poucas vezes foram aplicado a Maradona – El Pibe de Oro –, pois ele era visto como branco e não como morocho. Algo similar aconteceu no Brasil, onde Pelé sendo negro, era visto como uma pessoa de "alma branca".
O "morocho", no entanto, tem um significado diferente do que se entende no Brasil, onde a identidade racial negra foi mais afirmada e reconhecida. Na Argentina, esse termo acabou contribuindo para diluir e invisibilizar os afrodescendentes ao longo da história. O termo "morocho" pode englobar pessoas com ascendência indígena, mestiça ou afrodescendente, sendo muitas vezes usado como um eufemismo que evita reconhecer a presença de negros no país.
Além disso, em algumas situações, o termo "morocho" fora é usado de forma pejorativa, reforçando conotações de inferioridade ou exclusão social, e alimentando o racismo estrutural na sociedade argentina. E falando sobre racismo estrutural, na série argentina "Envidiosa", com a atriz Griselda Siciliani, a forma como uma personagem brasileira é retratada chega a incomodar, reforçando certos estereótipos e preconceitos culturais ao apresentar o "brasileiro" de forma reducionista no imaginário argentino.
A População Negra na Argentina ao Longo dos Séculos
Durante o período colonial, a população negra na Argentina era expressiva, especialmente em Buenos Aires e outras cidades. Em 1778, o Censo de Vértiz – o primeiro censo oficial realizado na cidade de Buenos Aires em 1778, durante o governo do vice-rei Juan José de Vértiz y Salcedo – indicava que cerca de 30% da população de Buenos Aires era composta por negros e mulatos, muitos deles trazidos como escravizados. Esse percentual variava conforme a região, sendo mais alto em cidades como Córdoba e Santiago del Estero.
No entanto, no século XIX, a presença de negros começou a diminuir gradualmente. Em 1810, ainda havia uma presença significativa, mas eventos como as guerras de Independência, que recrutaram muitos soldados negros usados como bucha de canhão, e as epidemias de febre amarela, que reduziram drasticamente a população, afetaram a população negra na Argentina. Estudos apontam que, em 1838, cerca de 23,7% da população de Buenos Aires era negra.
O declínio continuou ao longo do século XIX, especialmente devido à política de imigração argentina. A Constituição de 1853 incentivou a chegada de europeus, enquanto a população negra, já enfraquecida, foi cada vez mais assimilada ou miscigenada. No Censo Nacional de 1887, a população negra representava menos de 2% do total. O fato de censos posteriores talvez não incluírem "negro" como uma categoria étnica também tenha ajudado a invisibilizar esse grupo.
O Apagamento e a Invisibilização da Identidade Negra
Com a drástica redução da população negra autodeclarada, sua presença na sociedade argentina foi se tornando cada vez mais diluída. Muitos afrodescendentes passaram a ser identificados como "morochos", categoria mais vaga que não indicava origem africana. Além disso, a narrativa histórica oficial focou na imigração europeia como a principal responsável pela formação da identidade nacional, apagando a contribuição negra e índigena.
No começo do século XX, ainda havia afrodescendentes visíveis em Buenos Aires, como mostram algumas fotografias da época. No entanto, o impacto do apagamento histórico fez com que a identidade afro-argentina se tornasse cada vez menos reconhecida. Somente no censo de 2010, depois de mais de um século sem registros, a Argentina voltou a incluir a categoria "afrodescendente", identificando 0,4% da população (cerca de 150 mil pessoas). Hoje, a população negra na Argentina corresponde a 0,65% da população total, segundo o Censo Nacional de 2022, e se identifica como afro-argentina.
O Negro no Futebol Argentino e na Seleção
A participação reduzida de jogadores negros na seleção argentina não se deve apenas à demografia, mas também ao processo de construção da identidade da nação, onde a imagem do branco é predominante, em detrimento de outras etnias. Com uma população afrodescendente pequena e historicamente marginalizada, o número de jogadores negros que se destacam no futebol profissional é quase inexistente.
O caso mais notável é o de Alejandro De Los Santos, que jogou entre as décadas de 1920 e 1930, e o goleiro Héctor Baley (o 'Chocolate'), que foi reserva na Copa do Mundo de 1978, integrando o elenco campeão, mas sem atuar como titular. Mesmo sem ser titular, Baley e De Los Santos são exemplos de atletas de ascendência africana que tiveram espaço na seleção argentina.
Diferente de países como o Brasil e o Uruguai, onde a população negra sempre teve grande participação no futebol, a Argentina tem um histórico distinto, com uma redução drástica da população afrodescendente ao longo dos séculos e a ideia de que a imagem do branco deve representar a nação argentina predomina até hoje.
A Origem da Expressão "Macaguitos"
A expressão "macaguitos", usada de forma pejorativa para se referir aos negros, especialmente aos brasileiros, tem raízes em uma construção histórica de estereótipos raciais, e hoje ainda aparece nos campos de futebol entre torcedores e dirigentes. O termo "macaco" foi amplamente utilizado durante o período colonial como uma forma de desumanizar os negros africanos trazidos como escravizados.
Na Argentina, essa comparação com o macaco passou a simbolizar "selvageria", "primitividade" e "inferioridade", além de ser associada à ideia de imitação, no sentido de copiar gestos. O uso da palavra "macaco" também refletia a tentativa da sociedade argentina de se distanciar da identidade negra, adotando valores europeus, considerados mais "civilizados" e "avançados".
Como o Brasil sempre teve uma grande população negra e uma cultura afro-brasileira visível, os argentinos (não estou a generalizar), de forma rude e perversa, intensificaram essa associação negativa, criando um estereótipo de inferioridade. O termo "macaguitos" reflete não só o preconceito racial, mas também uma tentativa de impor uma falsa hierarquia racial e cultural na região sul-americana.
Vamos fechar o texto. Uma amiga argentina, que mora no Brasil, toda vez que ela ouve falar de casos de racismo no futebol, especialmente com argentinos envolvidos, costuma contar essa piada:"Qual a diferença entre um argentino e uma pizza? A pizza não acha que o mundo gira em torno dela, não é racista, e sabe quando parar de crescer!"