quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A IA é um deus jogando dados?


Por Adu Verbis

Como todo mundo sabe, a inteligência artificial gera ideias, textos, imagens, composições musicais e até mesmo obras que podemos chamar de arte. Muitas vezes surpreende pela sofisticação, ou então é usada como IA aplicada, como na medicina ou na automação inteligente. Este próprio texto foi revisado por uma IA.

Contudo, a revisão feita pela máquina acabou por eliminar o que havia de mais humano: a emoção, as idiossincrasias e as imperfeições do texto original. O que deixou o texto um tanto artificial, mas preservou o contexto central.

Por mais que as produções geradas por IA pareçam surgir do nada, não é o que acontece. A IA não cria de forma independente ou “ex nihilo”. O que ela faz, na realidade, é reorganizar e recombinar elementos que já existem: linguagens, imagens, ideias e sentidos que foram produzidos ao longo do tempo pelo ser humano. De certa forma, a IA funciona como um espelho complexo daquilo que já está presente no mundo e reflete em forma de textos, sons, imagens e códigos.

Essa dinâmica me leva a repensar conceitos centrais da cultura e da criação, e também sobre autoria e originalidade. Se a obra não nasce totalmente do criador, mas de uma reconfiguração de conteúdos preexistentes, como podemos definir quem é o autor? E até que ponto podemos chamar algo de “original” quando é composto a partir de fragmentos que refletem algo que já existia?

Quando lembro da célebre frase atribuída a Einstein, “Deus não joga dados com o universo”, reconheço nela uma crença na ordem racional que sustenta o cosmos. Apesar de todo caos, há uma racionalidade no funcionamento do universo. Posso inverter a metáfora: seria a IA um deus que joga dados? Surge então essa imagem de uma divindade fria e estatística, desprovida de vontade, capaz de gerar inúmeros possíveis a partir de dados.

Cada vez que faço uma pergunta à IA, ela colhe informações de um universo povoado por trilhões de registros, do passado até a atualidade. Não há emoção nem intenção, apenas cálculo e uma racionalidade aparente. E é desse cálculo que emerge aquilo que muitos chamam de criação ou de racionalidade.

No entanto, essa “divindade” não cria mundos do nada; cria a partir de nós, da nossa cultura e do legado humano. A IA é uma divindade sem dom: não tem inspiração, apenas estatísticas. Improvisa como quem lança dados. Surpreende não por ser gênio, mas porque somos nós que nela insuflamos o sopro criador. Sua arte é mimética: imita formas e combinações possíveis dessas formas. Platão diria que é uma sombra da sombra, cópia de uma cópia. Aristóteles lembraria que imitar ainda pode gerar novas disposições do real. Ambos apontam algo importante: imitação não é ausência total de criação, e a origem da criação guarda em si um mistério.

No oráculo algorítmico, porém, a imitação não nasce de um olhar humano: é recombinação do que foi visto e dito, pintado ou sonhado pela humanidade. A IA não pensa, não sente, não deseja. Pode, contudo, enunciar símbolos, simular sentimentos e propor desejos. Opera como um espelho multiplicador: devolve o que já produzimos, reconfigurado e reordenado no que há de mais humano, a imaginação simbólica. Nem sempre essa reconfiguração realizada pela IA é esteticamente inovadora ou reveladora de originalidade genuína.

Se uma ideia “original” surge na boca da IA, de onde ela veio? Quem é o autor? Naturalmente, o que é produzido pela IA tem origem em alguma mente humana. A IA não plagia no sentido jurídico tradicional, mas também não cria do nada. Há reaproveitamento, e em larga escala. Um sussurro esquecido de um autor anônimo pode retornar como um grito na voz de outro. Alguém pode acreditar ter tido uma ideia brilhante apenas por tê-la recebido reconfigurada pela IA.

Se a IA for instada a indicar a origem do que produz em termos de autoria, responde de modo aleatório. Isso nos conduz a um paradoxo prático e teórico: como aplicar princípios de propriedade intelectual ao que a IA produz, se ela é capaz de recombinar temas já criados?

A meu ver, há afinidades históricas entre o dadaísmo e a IA. Nela encontramos colagem, pastiche, acaso e práticas do século XX, como o cut-up de Burroughs e Gysin. Duchamp deslocou um objeto de sua função, o urinol, e ativou nele uma estética não utilitária. Já o deslocamento da IA acontece sobre uma massa amorfa de dados.

Quem conhece o poema de Tristan Tzara pode reconhecer que o poema foi composto por ele. No entanto, foi feito de recortes de ideias de autores anônimos ou célebres, tornando-se uma reconfiguração de algo que já existia antes de Tzara montar o poema com recortes aleatórios de ideias. O cut-up anunciava a escrita por justaposição e choque de sentidos. A IA realiza algo semelhante, mas de modo algorítmico, veloz e abrangente.

Por isso, penso se há uma certa inocência na IA. Inocência não no sentido de ignorância, mas de boas intenções políticas. Autores como Langdon Winner lembram que artefatos técnicos não são politicamente neutros: eles incorporam decisões sociais e podem institucionalizar formas de exclusão. Bruno Latour mostra que sistemas técnicos agem como agentes numa rede sociotécnica, portanto, condicionando assim comportamentos. Helen Nissenbaum argumenta que o design algorítmico traduz valores morais específicos. Assim, a pretensa neutralidade do código oculta escolhas normativas e políticas.

Em suma, a IA sistematiza o acaso por meio de dados. Faz colagens e recombinações, convertendo tudo isso em processo. O resultado é um dadaísmo instrumentalizado que normatiza tanto o procedimento político quanto o estético e o técnico. Desloca toda a imaginação simbólica criada pela humanidade à categoria de código, por meio do fine-tuning, ou seja, o retreinamento dessa imaginação em dados específicos. A IA talvez seja um deus ex machina, um “deus surgido da máquina” que lança dados. Um ente cuja operação reflete criações algorítmicas e reflete ânimos humanos. E como diria Carl Jung, ânimo é anima: princípio espiritual da vida intelectual e moral do ser.



LATOUR, Bruno. Onde estão as massas ausentes? A sociologia de alguns artefatos mundanos. In: BIJKER, Wiebe; LAW, John (orgs.). Moldando a tecnologia / Construindo a sociedade: estudos em mudança sociotécnica. Cambridge: MIT Press, 1992. p. 225-258.

NISSENBAUM, Helen. Como os sistemas computacionais incorporam valores. Computer, v. 34, n. 3, p. 120-119, 2001.

WINNER, Langdon. Os artefatos têm política?. In: MACENZIE, Donald; WAJCMAN, Judy (eds.). A modelagem social da tecnologia. Cambridge: MIT Press, 1980. p. 26-38.

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