Por Adu Verbis
Em um país onde o racismo estrutural ainda molda as relações sociais, a história de três homens – o agressor, a vítima e o advogado – vai muito além de um simples conflito. Reflete um processo histórico de opressão, onde as fronteiras entre agressor e vítima ficam bem nítidas, já que o próprio sistema de justiça, muitas vezes, acaba se tornando cúmplice das desigualdades que deveria corrigir. E não é por acaso que estamos falando de três homens negros.
O agressor (Carlos Alberto de Jesus), um policial militar negro reformado , é um reflexo de um sistema que, embora o tenha colocado em uma posição de poder, não o liberta das amarras de um racismo que, muitas vezes, ele mesmo perpetua. Como parte da máquina repressiva, o policial é vítima de uma estrutura que ensina a violência como resposta, mas ao mesmo tempo, é exigido a controlar e submeter os próprios semelhantes. Ele não age por impulso isolado, mas como peça de uma engrenagem que o condiciona a tratar os negros com a mesma brutalidade com que foi ensinado a se submeter a esse sistema. Sua violência não é um acidente, mas parte de um ciclo cruel que prende tanto o opressor quanto o oprimido. O "calor da emoção" alegado na sua defesa não justifica a violência, mas revela a falha de um sistema que não só permite, mas às vezes até incentiva, a perpetuação de um modelo de controle violento que sacrifica a dignidade do próprio negro.
A vítima ( Igor de Melo Carvalho), por sua vez, é um trabalhador e estudante negro, que carrega sobre si o peso de uma sociedade que, além de racista, muitas vezes vê sua própria dor com indiferença. Sua posição de vulnerabilidade não se limita ao simples fato de ser negro, mas se expande pela complexidade de sua luta diária – no trabalho, na educação, na própria sobrevivência. A brutalidade sofrida pelas mãos do agressor é uma consequência direta do racismo estrutural, mas também da falta de solidariedade, muitas vezes, entre os próprios negros. A discriminação que enfrenta não vem apenas do sistema branco, mas, em certos momentos, também de dentro da própria comunidade negra, que, acossada por séculos de opressão, reproduz os mesmos preconceitos que deveria combater. Sua dor, então, se amplia pela falta de reconhecimento, não só do racismo externo, mas da própria falta de empatia entre aqueles que compartilham da mesma cor de pele.
O advogado (André Rios), parte da lei, é o elo entre o agressor e a justiça. Um negro, defensor do agressor, alegando que ele agiu "no calor da emoção". Sua defesa não é apenas uma estratégia legal, mas uma reflexão do sistema que, mesmo ao se dizer imparcial, reforça e legitima as desigualdades estruturais. O advogado, ao justificar o ato do agressor dessa maneira, não só isenta o policial de responsabilidade direta, mas também normaliza a violência como algo que pode ser "entendido" ou "perdoado" em momentos de tensão. Ele não defende apenas um cliente, mas um sistema que, no fundo, é o grande responsável pela perpetuação das desigualdades. Ao mesmo tempo, carrega consigo a ambiguidade de ser negro em um sistema jurídico que, muitas vezes, não reconhece as profundezas das desigualdades raciais. Sua posição é um reflexo de um dilema: sabe que, para prosperar, precisa se alinhar a um sistema que, no fundo, ainda é racista, e, ao fazê-lo, acaba sendo cúmplice de uma estrutura que prejudica os mais vulneráveis.
Essa triade – o agressor, a vítima e o advogado – não é apenas um episódio isolado, mas um reflexo de um Brasil onde o racismo estrutural ainda define as relações sociais. O agressor, embora negro, se vê preso a um sistema que o coloca no papel de opressor. A vítima, com suas múltiplas identidades de trabalhador e estudante, é quem paga o preço da desigualdade. E o advogado, defensor de um sistema que perpetua a injustiça, acaba sendo a face da manutenção de um ciclo que precisa ser rompido.
Cada um desses homens é um reflexo do Brasil profundo, aquele que ainda vive as marcas de um passado que não consegue se desfazer, e, ao mesmo tempo, é a promessa de um futuro em que a luta por justiça e igualdade não seja apenas uma busca formal, mas um movimento profundo e transformador. O racismo, ao contrário de ser um fenômeno distante, ainda é um fator ativo e moldador das ações e das vidas daqueles que, por mais que se esforcem, não conseguem escapar do peso da história.
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