sexta-feira, 25 de abril de 2025

O Goleiro e a Física Quântica


Por Adu Verbis

O futebol, esporte apaixonante e imprevisível, sempre foi um campo fértil para analogias com a ciência, principalmente quando se trata de entender a mente e as decisões de um goleiro. Ao longo das décadas, o goleiro passou de um simples guardião de sua meta a um jogador que, cada vez mais, precisa entender a complexidade das interações entre tempo, espaço e movimento. E se, no fundo, a tomada de decisão de um goleiro fosse algo como um jogo de probabilidades? Algo que se aproximasse das ideias de Física Quântica, onde o comportamento dos átomos e partículas subatômicas desafia a intuição, e a precisão de cada movimento depende de uma interação com o espaço e o tempo que, muitas vezes, transcende o racional?

Talvez o goleiro ideal do futuro seja uma espécie de intérprete de incertezas – alguém que, como o observador quântico, influencie o desfecho da jogada pela forma como observa e reage à ação. Cada movimento em campo, cada chute em direção ao gol, contém múltiplas possibilidades de desfecho, e é justamente a presença e a decisão do goleiro que “colapsa” essa multiplicidade em um único resultado.

Mas a Física Quântica é apenas uma metáfora – ou talvez não. Pois, além de se aprofundar em conceitos quânticos, um goleiro poderia também se beneficiar enormemente do estudo da matemática cinética. A cinética, que trata do movimento dos corpos e das forças que o influenciam, tem tudo a ver com as decisões rápidas e os deslocamentos dos goleiros durante as partidas. Ao entender os princípios da cinética, um goleiro poderia aprimorar sua percepção espacial, a forma como calcula a trajetória da bola e, especialmente, o tempo de reação necessário para interceptar ou desviar um chute.

Cálculo da Trajetória da Bola

A trajetória de uma bola no futebol não segue uma linha reta, mas sim um caminho curvado, influenciado por fatores como a velocidade, a força e a rotação. Com o estudo da cinética, um goleiro aprenderia a prever essas trajetórias de forma mais precisa. Ao compreender como a velocidade da bola interage com as forças externas, como o vento ou o impacto com o pé do jogador, o goleiro poderia usar essa informação para tomar decisões mais rápidas e acertadas.

Tempo e Distância: O Deslocamento Ideal

Quando a bola é lançada ou chutada, o goleiro precisa calcular, instintivamente, o tempo de reação necessário para alcançá-la. A cinética ensina justamente como otimizar esse tempo de resposta. Ao entender sua própria massa, a força que pode aplicar em seus deslocamentos, e o tempo necessário para percorrer determinada distância, o goleiro se torna capaz de tomar decisões mais seguras e técnicas ao sair do gol.

A Energia Cinética na Defesa

Defender um chute potente também é um ato de gerenciamento de energia. Ao compreender melhor como a energia cinética se manifesta e se dissipa, o goleiro pode ajustar sua técnica para absorver o impacto da bola de maneira mais eficiente, sem perder o equilíbrio e mantendo o controle do rebote.

A Importância dos Vetores e da Geometria do Corpo

A matemática cinética envolve também o uso de vetores para descrever direções e magnitudes de forças. Para o goleiro, isso se traduz na forma como ele posiciona o corpo para influenciar ou anular o curso da bola. Quanto mais preciso o entendimento dessas forças e ângulos, mais inteligente se torna a sua movimentação.

A evolução do goleiro moderno pode – e talvez deva – passar pelo estudo de disciplinas como a física quântica e a matemática cinética. Mais do que treinar o corpo, é preciso educar a mente para lidar com a incerteza, com o instante, com a explosão de possibilidades que cada chute carrega. O goleiro é, no fim, um mestre do tempo e do espaço. E, quem sabe, ao estudar essas ciências, possa um dia não apenas defender o gol – mas reescrever as probabilidades do jogo.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Totens Líquidos – O que Freud diria sobre os reborns?


Por Adu Verbis

Estamos numa era em que a ideia de ressignificar tem um certo contexto de varinha mágica, como se, ao apontar a varinha mágica do ressignificar para certos temas, logo se atribuísse um novo significado a alguns temas ou a alguém. Mas não é bem isso que acontece, pois a vida não é um programa que se atualiza e corrige um bug.

Além da busca de simetrias por meio da ressignificação, há também as questões de afeto. Por isso, estar perto do outro hoje pede um certo jogo de cintura e o uso de um filtro conceitual para se aproximar do outro sem que o outro se sinta julgado, mas sim amado e respeitado do jeito que é.

Porém, tem uma coisa que vem me chamando atenção nos "consultórios da internet": uma cena que vem se repetindo. Ou seja, mulheres adultas embalam, alimentam, passeiam e até levam ao pediatra bonecos hiper-realistas de silicone.

Esses bebês são chamados de reborn – "renascido". São imitações quase perfeitas de recém-nascidos que viralizaram nas redes sociais, onde mulheres dedicam uma rotina de cuidados materna – só que voltada para um objeto. Entre o espanto e o julgamento, esse fenômeno levanta uma pergunta mais profunda: o que está sendo transferido para esses bonecos? Afeto, carência ou algum sentimento misturado com modismo e consumo?

E mais: o que será que Freud diria? O decifrador de fantasmas – como gosto de chamá-lo – talvez visse nisso uma forma de amor totemizado. Um amor que parece não ter retorno, mas que carrega uma força simbólica – uma energia emocional quase ritualística

A Maternidade Que Se Desfez do Destino

Durante séculos, a maternidade foi o centro da identidade feminina. Ser mulher era, basicamente, ser mãe – ou pelo menos desejar ser. Mas esse modelo foi ruindo. Com as lutas feministas, o acesso à educação, a autonomia sobre o próprio corpo e os novos modos de viver, ser mãe deixou de ser destino e virou escolha.

E aí surge um novo tipo de vazio: o que fazer com o afeto que, antes, era canalizado na criação de filhos? Até porque, criar filhos também era uma forma de cumprir um projeto social – de povoar o mundo, de dar continuidade à espécie e de ocupação política.

Hoje, as taxas de natalidade estão caindo em quase todo o Ocidente. A maneira como as pessoas vivem a maturidade mudou. Ter filhos já não é mais o símbolo inevitável da realização. Com isso, a maternidade começa a ganhar outras formas: simbólicas, afetivas, reinventadas.

Do Pai Totêmico ao Bebê Totêmico

Em Totem e Tabu, Freud propôs uma das hipóteses mais inquietantes da psicologia: os antigos humanos, ao matarem o pai tribal – símbolo da lei e da repressão – teriam transformado essa figura em um totem, uma imagem sagrada que preserva a memória do desejo e do interdito. A sociedade, então, passa a girar em torno desse símbolo, que ocupa o lugar da ausência e ressignifica a figura do pai ou da mãe tribal.

Se a gente traz essa lógica pro presente, o reborn seria um tipo de totem invertido – não o pai morto, mas o filho que não nasceu, a maternidade que não se concretizou, o laço que se deseja sem o peso da convivência real e sem julgamento.

Assim como o totem organizava os impulsos do grupo, o reborn regula afetos internos, ou simulados. Ele se torna um canal para projetar amor, cuidado e sentido – mas num corpo que não reage, não exige, não se frustra, embora seja um objeto carregado de ressignificação.

Transferência de Afeto e Vínculo Sob Controle

A psicanálise fala muito sobre transferência de afeto – quando sentimentos profundos, muitas vezes inconscientes, são redirecionados pra pessoas, objetos ou símbolos. Isso acontece no divã, mas também fora dele: no carinho por um pet, na idolatria por uma celebridade, no apego a um objeto antigo da infância.

Hoje, essa transferência tem acontecido cada vez mais com entidades não humanas: animais de estimação, assistentes virtuais, personagens fictícios… e, claro, os bebês reborn. É como os japoneses com o Tamagotchi – aquele bichinho virtual lançado pela Bandai em 1996. O nome, aliás, vem da mistura de tamago (ovo) com o sufixo carinhoso -tchi. Portanto, o afeto tem seus aspectos virtuais:   existente apenas em potência ou como faculdade, mas nem sempre tem um efeito real.

Não sei se a relação dessas mulheres com seus reborns é uma forma de amor sem risco, um tipo de vínculo sob controle. O reborn não morre, não chora, não desaparece. Mas deve haver ali alguma forma de morte simbólica – como nas meninas que enjoavam de uma boneca e pediam aos pais para comprar outra. O reborn permanece, servindo de espelho para o cuidado que se deseja oferecer. Um totem de silicone que acolhe, mas não olha de volta – ao contrário das crianças reais, que nos obrigam a decifrar seus mundos pelos olhos delas.

Mas há algo que sempre observei na forma como as mães lidam com suas crias: elas exploram um lado lúdico que, por vezes, pode parecer artificial. Ainda assim, é nesse jogo que se revela um modo de cuidar, educar e preparar a criança para a vida. Talvez a ritualização lúdica com os reborns guarde alguma referência ao brincar de boneca – não mais como um treino para o “instinto materno”, mas como uma forma simbólica de afeto e construção de sentido num mundo que a todo momento cobra a ressignificação de temas e de alguém.

Totens Domésticos de Uma Era Pós-Humana

Byung-Chul Han fala sobre o "desaparecimento do outro" na era digital. Ao invés de lidarmos com o outro, que nos desafia, preferimos espelhos que apenas validam nossas emoções. O reborn seria esse tipo de espelho – não um filho com subjetividade própria, mas um reflexo da fantasia da maternidade sem conflito, ou até um espelho de uma emoção doente e reprimida, ou uma forma pragmática de satisfação, conquistada por meio de likes.

Freud talvez não ficasse surpreso com esse fenômeno. Ele veria os reborns como sintomas culturais, respostas subjetivas a um mal-estar civilizatório. Em um mundo onde o amor é risco, a maternidade é uma escolha, e a solidão é estrutural, essas figuras substitutas se tornam totens sentimentais, maneiras de não sucumbir ao vazio.

A Transferência de Afeto Também é um Pedido

Talvez, no fundo, o bebê reborn não seja apenas um simulacro, nem um desvio afetivo ou emocional. Talvez seja um pedido silencioso por vínculo, por significado – por uma forma de amar que não nos destrua. A mulher que o trata como um filho pode estar apenas tentando, à sua maneira, manter acesa a chama de um desejo arquetípico: o de criar laços em um mundo cada vez mais desencantado, mergulhado em violências – conceituais e físicas. A violência atravessa a todos, deixa vestígios e ressignifica os afetos.

E, assim, Freud, ao final, não julgaria. Ele escutaria. E perguntaria:
"O que você ama, quando ama esse boneco?"




terça-feira, 8 de abril de 2025

Meu corpo, minhas regras vs. Sou dono de mim mesmo: reivindicação política e autopropriedade liberal do anarco-capitalista



Por Adu Verbis

A frase "meu corpo, minhas regras" virou um dos lemas centrais dos movimentos feministas contemporâneos. De forma clara e direta, ela expressa a exigência por autonomia corporal, especialmente em temas como aborto, contracepção, violência sexual e direitos reprodutivos. É um ato político de reivindicação: um apelo para que o Estado e a sociedade reconheçam a soberania da mulher sobre o próprio corpo.

De forma parecida, a ideia liberal de autopropriedade – expressa na frase "sou dono de mim mesmo" – também busca garantir a autonomia individual. Presente desde o pensamento de John Locke, essa noção defende que cada pessoa é dona de si e, por consequência, do próprio trabalho e de seus frutos. Esse princípio virou um dos pilares do liberalismo clássico e também do pensamento anarco-capitalista atual. Para Locke, a propriedade privada nasce da combinação do trabalho com os recursos naturais, sendo uma extensão do domínio sobre si mesmo.

Mas tanto no lema feminista quanto na ideia liberal, essa noção de autopropriedade não acontece no vazio. A soberania sobre o corpo só se concretiza com reconhecimento social, jurídico e institucional. Em outras palavras: não basta dizer "sou dona de mim" ou "sou dono de mim" – é preciso que existam leis, normas e estruturas coletivas que deem suporte a essa afirmação.

No caso do feminismo, "meu corpo, minhas regras" é muitas vezes um grito contra a interferência do Estado patriarcal – mas, ao mesmo tempo, exige que o próprio Estado atue para garantir essa autonomia. É ele quem deve oferecer acesso a serviços de saúde, assegurar o direito ao aborto legal, punir agressores, promover a educação para igualdade. Ou seja, é uma demanda por pacto social: queremos que o corpo seja respeitado por nos pertencer, mas, para isso, precisamos de uma estrutura coletiva que reconheça e proteja essa posse. Sem esse reconhecimento, a autonomia corporal vira uma ideia abstrata, sem força prática ou respaldo legal.

Algo semelhante acontece com a ideia liberal de que cada um é dono de si mesmo. Ela só se sustenta se houver instituições que reconheçam e garantam essa condição. Em contextos anarco-capitalistas que rejeitam o Estado, a proteção da autopropriedade fica nas mãos de contratos privados, empresas de segurança e mecanismos de mercado. Mas isso gera um paradoxo: sem uma instância capaz de regular, julgar e impor limites, a autopropriedade acaba nas mãos de quem tem mais poder, mais dinheiro ou mais força. Em vez de garantir liberdade, a ausência de um pacto comum abre espaço para a falsa noção de que os "mais fortes" merecem dominar e os "mais fracos" devem se submeter à sua vontade, como se essa hierarquia fosse natural ou justa.

Essa discussão é ainda mais delicada quando falamos do corpo: tanto no liberalismo quanto no feminismo, o corpo é o primeiro lugar onde se experimenta a liberdade. Mas a liberdade não é uma condição natural – é uma construção política e histórica. Judith Butler, por exemplo, lembra que a autonomia corporal depende de uma rede de relações que sustenta e reconhece o indivíduo. Silvia Federici, por sua vez, mostra como a história do capitalismo está marcada pela expropriação violenta dos corpos das mulheres, o que torna a luta por soberania corporal inseparável das condições econômicas e sociais.

Assim, tanto a afirmação feminista quanto a liberal partem do mesmo ponto: a necessidade de afirmar a dignidade e a autonomia de cada pessoa. Mas ambas dependem de um pano de fundo coletivo. A autopropriedade não é um dado natural – é uma construção social. Ela só existe de fato quando reconhecida por uma ordem comum. Não se trata apenas de liberdade no papel, mas de condições reais – materiais e institucionais – que tornem essa liberdade possível.

Quando alguém diz "meu corpo, minhas regras" ou "sou dono de mim mesmo", não está apenas fazendo uma afirmação individual: está pedindo que essa autonomia seja reconhecida e garantida por todos. Essas expressões, por mais que soem individuais, só ganham força quando amparadas por um contexto social capaz de protegê-las. No fim das contas, a soberania do corpo é sempre um ato político.

Sob outra luz, é possível ainda lançar um olhar conceitual mais radical sobre esses dois polos de discurso. A ideia de autopropriedade, ao negar sua dependência de um contrato social e insistir na soberania absoluta do indivíduo, corre o risco de se aproximar do que chamo de Selvageria Conceitual – conceito em que o poder não encontra barreiras éticas, jurídicas ou comunitárias, e a liberdade se converte em domínio. A autopropriedade, sem regulação coletiva, se transforma numa liberdade hostil, onde a força substitui o direito e o individualismo degenera em violência conceitual. Assim, a própria noção de ser dono de si mesmo, se levada às últimas consequências sem mediação social, implode na ausência de limites compartilhados, retornando à selvageria como forma extrema de liberdade e direitos desestruturados.

Por outro lado, a reivindicação feminista de "meu corpo, minhas regras" pode ser vista, em sentido filosófico mais elaborado, como uma exigência fundada no que chamo de um Biocritério – termo que designa um princípio de discernimento ético, político e epistêmico a partir da vida e de suas condições materiais. O feminismo, ao lutar pela autonomia corporal, não está apenas pedindo reconhecimento de uma propriedade sobre o corpo, mas invocando um critério vital de justiça, igualdade e legitimidade. O corpo feminino, historicamente apropriado, explorado e silenciado, torna-se então o campo primeiro de uma crítica biopolítica que redefine o que é justo, o que é digno e o que é possível. O "meu corpo" torna-se critério de mundo, e suas regras, exigências de uma nova política da vida.

Entre a Selvageria Conceitual da autopropriedade radical e o Biocritério encarnado na luta feminista, revela-se um dilema contemporâneo: liberdade sem mediação social pode ser apenas outra forma de dominação; já a luta pelo corpo como critério de justiça redefine a liberdade como construção coletiva. Eis o desafio: pensar o corpo não apenas como posse, mas como território ético.

sábado, 5 de abril de 2025

O laboratório das ideias predatórias: onde a verdade é um ratinho de laboratório

 



Por Adu Verbis

O pessoal antigo costumava dizer que o mundo não gira, que o mundo capota. E recentemente a ideia de que a Terra é plana tomou as mentes de assalto – uma ideia que nem na Idade Média seria levada a sério. Pois vivemos um tempo em que a verdade se tornou cobaia no laboratório das ideias predatórias. A verdade, desde tempos remotos, já era um bicho selvagem – mas um bicho que pode ser domesticado conforme os interesses do tutor, ou dos tutores.

E na era digital, a verdade se tornou líquida, e nem sempre conduz os debates à veracidade, pois se evapora com muita facilidade. Mas, não obstante, a verdade também é a imagem de um ratinho de laboratório – testada, distorcida, manipulada, colocada sob o foco da câmera em um experimento. Enquanto isso, ideias predatórias são soltas na arena pública como animais treinados para dominar território simbólico, sem qualquer consideração pelas consequências sociais, éticas ou coletivas. O que importa não é a verdade – a propriedade de estar conforme com os fatos ou com a realidade –, mas sim a ocupação do espaço político e econômico, onde a verdade vira um axioma que sustenta o princípio ou o julgamento aceito como autêntico dentro de um contexto político de grupos irracionais.

Temos dois episódios, aparentemente distintos, que revelaram o funcionamento do laboratório das ideias predatórias. De um lado, Felipe Neto, que, entre aspas, anunciou sua candidatura à presidência da República – uma jogada que se revelou uma encenação crítica. De outro, o deputado federal Nikolas Ferreira, apelidado nas redes como “Chupetinha”, que publicou um vídeo clamando por anistia, e teve a pachorra de se comparar a ativistas históricos, evocando um discurso de perseguição. Ambos performaram as verdades dos laboratórios de ideias predatórias – em contextos distintos – e ambos mostraram o quanto a noção de realidade pode ser sequestrada por estratégias que visam apenas dominar o espaço virtual e converter o resultado virtual dessas verdades em verdade real

Felipe Neto e o espelho invertido da mídia

No caso de Felipe Neto, que lançou a falsa candidatura como isca, ela funcionou. Em minutos, a “notícia” circulava como fato, sendo reproduzida por sites jornalísticos, páginas informais, grupos de WhatsApp e bolhas digitais. Só depois veio a revelação: tratava-se de uma encenação proposital, um experimento para mostrar como a mídia – mesmo a tradicional – muitas vezes opera sem verificação, movida pela urgência do clique e pela velocidade de sua verdade líquida.

A crítica de Felipe é legítima e toca numa ferida real. Mas, ao lançar mão da mentira como ferramenta, mesmo que com intenção crítica, o experimento acaba sendo absorvido pelo próprio ambiente que denuncia. A pegadinha expõe o colapso do jornalismo factual, mas também o reforça, pois participa do mesmo jogo em que a verdade virou apenas mais um dado volátil.

Nikolas Ferreira: domínio simbólico e vitimismo estratégico

No mesmo palco, mas com outra direção, Nikolas Ferreira interpretou seu papel. No vídeo em que clama por “anistia”, o deputado constrói a imagem do mártir contemporâneo: sobre trilhas sonoras grandiosas, se associa a lutas históricas por justiça e liberdade, se apropria de símbolos – Rosa Parks e Luther King – da luta por direitos para encenar uma narrativa de perseguição política e defender golpistas. 

Aqui, a tática é clara: ocupar o espaço simbólico  da luta – mesmo que com sinais invertidos. É o uso deliberado da estética da justiça para justificar ações que minam a própria noção de justiça. Trata-se de uma ideia predatória em sua forma pura: não há responsabilidade com o tecido social que se destrói no processo, apenas a ânsia por ampliar o próprio alcance, manter o público engajado e converter atenção em capital político, econômico e simbólico.

Quem é Débora?

Débora é a jovem que participou ativamente de atos golpistas, tramados por cientistas predatórios – e ela era apenas um ratinho de laboratório que, entre os crimes que cometeu, ficou conhecida pelo menor deles: pichar a estátua da Justiça na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Diferente de outros casos, sua ação foi direta, física, sem roteirização digital. O que ela fez não cabia no jogo dos algoritmos, mas foi construído com a ajuda deles – e pela prevaricação do poder. Não havia ironia performática nem edição de mártir no ato de pichar a estátua. Havia um gesto nu, frontal, que desafiava não apenas um símbolo, mas a própria estrutura da democracia, erguida num longo período de luta para reparar os desvios cometidos pelos militares durante todo o período da ditadura.

Selvageria conceitual e ocupação simbólica

As ideias predatórias de que falamos aqui se aproximam de um conceito mais profundo: o da selvageria conceitual. Trata-se de uma forma de atuação discursiva em que não há freios morais nem preocupação com os danos causados ao ecossistema social. O objetivo é dominar: impor significados, ocupar territórios simbólicos, gerar reações em cadeia, neutralizar o contraditório não pelo argumento, mas pelo volume de ideias estruturadas no laboratório das ideias predatórias. A selvageria conceitual não é ignorância – é cálculo, e tem muito de má-fé. São ideias que sabem exatamente o que fazem: avançam sobre os espaços comuns com fúria retórica e emocional – e deixam para trás um rastro de confusão, ressentimento e descrença, e todo um povo alienado por não ser capaz de distinguir as coisas.

A verdade formatada nos laboratórios predatórios

O ambiente virtual virou um zoológico de bichos anônimos ou bichos célebres, todos em escaramuças estratégicas para ocupar espaços. E a mentira corre solta no zoológico, enquanto a verdade é mantida em jaulas – exibida como relíquia e, outras vezes, travestida de verdade, embora no fundo seja a mentira em essência.

No laboratório das ideias predatórias, quem sobrevive não é o argumento mais justo, mas o mais adaptável à lógica do engajamento. A arena está armada para o espetáculo, e os adestradores – que podemos chamar de enfluênciadores , com suas perversas epismologias (formas corrompidas de pensar o conhecimento), destroem mais do que propriamente constroem. A verdade é um bicho selvagem, porém frágil, e no laboratório, ela corre em círculos, sob o olhar entorpecido do público e dos cientistas predatórios.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

O Ponto Cego Do Ponto De Vista


Por Adu Verbis

Dizer que todo olhar sobre o mundo carrega um filtro inevitável – a subjetividade – é, de certa forma, chover no molhado. Mas vou usar meu ponto cego e regar esse solo já encharcado.

O que enxergamos, interpretamos e concluímos está condicionado por nossas experiências, por camadas de valores e por limitações cognitivas que nem sempre percebemos. E é justamente essa falta de percepção que compõe nossa visão de mundo – uma visão moldada por um ponto cego. Assim, todo ponto de vista, por mais embasado que pareça, abriga uma zona de invisibilidade, onde aspectos da realidade se ocultam. Mas o ego sustenta que esse ponto de vista é legítimo, e é aí que mora o problema: insistimos em defendê-lo, mesmo quando está errado.

A subjetividade não só colore a percepção individual, mas também restringe o campo de visão. O filósofo Thomas Nagel, no clássico ensaio What Is It Like to Be a Bat? (Como é ser um morcego?), ilustra a impossibilidade de compreendermos plenamente a experiência de outro ser. Da mesma forma, ao adotarmos um ponto de vista, ganhamos uma perspectiva, mas perdemos outras. Só que adotar um ponto de vista é também um ato de posicionamento: pode ser uma forma de desafiar o mundo ou simplesmente de mantê-lo como está, sustentado por nossas crenças.

O peso da subjetividade se manifesta de várias formas, mas é na esfera emocional que ele mais se impõe. E quando molda o discurso político, cria narrativas que não necessariamente buscam a verdade, mas sim a manutenção do ponto de vista de quem as sustenta. No fundo, cada um defende aquilo que, emocionalmente, traz mais conforto – ou menos desconforto.

Na arte, o mesmo quadro pode inspirar leituras divergentes, dependendo do olhar do observador. No campo científico, a tentativa de objetividade esbarra nas hipóteses preexistentes que direcionam o olhar do pesquisador. Nenhuma dessas situações invalida a existência de um mundo externo, mas reforça a ideia de que o acesso a ele é sempre mediado por vieses interpretativos, que surgem através de um ponto cego, ou seja, do posicionamento cognitivo no mundo.

Costumo usar o conceito de Selvageria Conceitual, que sugere que construções teóricas podem se expandir e ocupar espaços de maneira predatória, dominando visões de mundo sem necessariamente estarem ancoradas em uma verdade objetiva, mas sim em uma vontade objetiva. Esse conceito se contrapõe à Selvageria Animal, que possui limites físicos e biológicos, enquanto a Selvageria Conceitual não se restringe por barreiras naturais, podendo se propagar indefinidamente na cultura e na política. Dessa forma, certas ideias se tornam dominantes não por sua veracidade, mas por sua capacidade de se multiplicar e silenciar outras perspectivas.

Além disso, também utilizo o conceito de Biocritério para apontar os diferentes princípios que estruturam a avaliação da realidade. Trata-se do modo como se determinam juízos de valor – o que é verdadeiro, belo ou justo. Argumento que esses critérios não são absolutos, mas construídos dentro de contextos culturais e históricos específicos. Assim, cada sociedade ou indivíduo adota um biocritério próprio para julgar o mundo e se posicionar nele, o que reforça a impossibilidade de uma visão completamente objetiva. No fim, o que se sustenta não é a verdade, mas uma vontade amparada pelo biocritério e propagada pela Selvageria Conceitual.

A consciência de que enxergamos o mundo a partir de um ponto cego não torna nada melhor, mas ao menos ajuda a não piorar, já que nos lembra da importância de exercitar a reflexão crítica sobre a própria subjetividade. Reconhecer a existência desse ponto cego é o primeiro passo para ampliar a própria perspectiva sobre o mundo e o lugar que ocupamos nele. Isso não significa aderir a um relativismo absoluto, onde toda opinião se equivale, mas sim cultivar uma abertura para questionar o próprio ponto de vista e explorar diferentes formas de ver o mundo.

No fim, o desafio não é escapar da subjetividade – uma tarefa inalcançável –, mas aprender a navegar por ela, tornando o invisível menos opaco e o desconhecido menos distante. Ou, ao menos, evitando encharcar ainda mais o solo já saturado da subjetividade.