quarta-feira, 2 de abril de 2025

O Ponto Cego Do Ponto De Vista


Por Adu Verbis

Dizer que todo olhar sobre o mundo carrega um filtro inevitável – a subjetividade – é, de certa forma, chover no molhado. Mas vou usar meu ponto cego e regar esse solo já encharcado.

O que enxergamos, interpretamos e concluímos está condicionado por nossas experiências, por camadas de valores e por limitações cognitivas que nem sempre percebemos. E é justamente essa falta de percepção que compõe nossa visão de mundo – uma visão moldada por um ponto cego. Assim, todo ponto de vista, por mais embasado que pareça, abriga uma zona de invisibilidade, onde aspectos da realidade se ocultam. Mas o ego sustenta que esse ponto de vista é legítimo, e é aí que mora o problema: insistimos em defendê-lo, mesmo quando está errado.

A subjetividade não só colore a percepção individual, mas também restringe o campo de visão. O filósofo Thomas Nagel, no clássico ensaio What Is It Like to Be a Bat? (Como é ser um morcego?), ilustra a impossibilidade de compreendermos plenamente a experiência de outro ser. Da mesma forma, ao adotarmos um ponto de vista, ganhamos uma perspectiva, mas perdemos outras. Só que adotar um ponto de vista é também um ato de posicionamento: pode ser uma forma de desafiar o mundo ou simplesmente de mantê-lo como está, sustentado por nossas crenças.

O peso da subjetividade se manifesta de várias formas, mas é na esfera emocional que ele mais se impõe. E quando molda o discurso político, cria narrativas que não necessariamente buscam a verdade, mas sim a manutenção do ponto de vista de quem as sustenta. No fundo, cada um defende aquilo que, emocionalmente, traz mais conforto – ou menos desconforto.

Na arte, o mesmo quadro pode inspirar leituras divergentes, dependendo do olhar do observador. No campo científico, a tentativa de objetividade esbarra nas hipóteses preexistentes que direcionam o olhar do pesquisador. Nenhuma dessas situações invalida a existência de um mundo externo, mas reforça a ideia de que o acesso a ele é sempre mediado por vieses interpretativos, que surgem através de um ponto cego, ou seja, do posicionamento cognitivo no mundo.

Costumo usar o conceito de Selvageria Conceitual, que sugere que construções teóricas podem se expandir e ocupar espaços de maneira predatória, dominando visões de mundo sem necessariamente estarem ancoradas em uma verdade objetiva, mas sim em uma vontade objetiva. Esse conceito se contrapõe à Selvageria Animal, que possui limites físicos e biológicos, enquanto a Selvageria Conceitual não se restringe por barreiras naturais, podendo se propagar indefinidamente na cultura e na política. Dessa forma, certas ideias se tornam dominantes não por sua veracidade, mas por sua capacidade de se multiplicar e silenciar outras perspectivas.

Além disso, também utilizo o conceito de Biocritério para apontar os diferentes princípios que estruturam a avaliação da realidade. Trata-se do modo como se determinam juízos de valor – o que é verdadeiro, belo ou justo. Argumento que esses critérios não são absolutos, mas construídos dentro de contextos culturais e históricos específicos. Assim, cada sociedade ou indivíduo adota um biocritério próprio para julgar o mundo e se posicionar nele, o que reforça a impossibilidade de uma visão completamente objetiva. No fim, o que se sustenta não é a verdade, mas uma vontade amparada pelo biocritério e propagada pela Selvageria Conceitual.

A consciência de que enxergamos o mundo a partir de um ponto cego não torna nada melhor, mas ao menos ajuda a não piorar, já que nos lembra da importância de exercitar a reflexão crítica sobre a própria subjetividade. Reconhecer a existência desse ponto cego é o primeiro passo para ampliar a própria perspectiva sobre o mundo e o lugar que ocupamos nele. Isso não significa aderir a um relativismo absoluto, onde toda opinião se equivale, mas sim cultivar uma abertura para questionar o próprio ponto de vista e explorar diferentes formas de ver o mundo.

No fim, o desafio não é escapar da subjetividade – uma tarefa inalcançável –, mas aprender a navegar por ela, tornando o invisível menos opaco e o desconhecido menos distante. Ou, ao menos, evitando encharcar ainda mais o solo já saturado da subjetividade.

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