Por Adu Verbis
A frase "meu corpo, minhas regras" virou um dos lemas centrais dos movimentos feministas contemporâneos. De forma clara e direta, ela expressa a exigência por autonomia corporal, especialmente em temas como aborto, contracepção, violência sexual e direitos reprodutivos. É um ato político de reivindicação: um apelo para que o Estado e a sociedade reconheçam a soberania da mulher sobre o próprio corpo.
De forma parecida, a ideia liberal de autopropriedade – expressa na frase "sou dono de mim mesmo" – também busca garantir a autonomia individual. Presente desde o pensamento de John Locke, essa noção defende que cada pessoa é dona de si e, por consequência, do próprio trabalho e de seus frutos. Esse princípio virou um dos pilares do liberalismo clássico e também do pensamento anarco-capitalista atual. Para Locke, a propriedade privada nasce da combinação do trabalho com os recursos naturais, sendo uma extensão do domínio sobre si mesmo.
Mas tanto no lema feminista quanto na ideia liberal, essa noção de autopropriedade não acontece no vazio. A soberania sobre o corpo só se concretiza com reconhecimento social, jurídico e institucional. Em outras palavras: não basta dizer "sou dona de mim" ou "sou dono de mim" – é preciso que existam leis, normas e estruturas coletivas que deem suporte a essa afirmação.
No caso do feminismo, "meu corpo, minhas regras" é muitas vezes um grito contra a interferência do Estado patriarcal – mas, ao mesmo tempo, exige que o próprio Estado atue para garantir essa autonomia. É ele quem deve oferecer acesso a serviços de saúde, assegurar o direito ao aborto legal, punir agressores, promover a educação para igualdade. Ou seja, é uma demanda por pacto social: queremos que o corpo seja respeitado por nos pertencer, mas, para isso, precisamos de uma estrutura coletiva que reconheça e proteja essa posse. Sem esse reconhecimento, a autonomia corporal vira uma ideia abstrata, sem força prática ou respaldo legal.
Algo semelhante acontece com a ideia liberal de que cada um é dono de si mesmo. Ela só se sustenta se houver instituições que reconheçam e garantam essa condição. Em contextos anarco-capitalistas que rejeitam o Estado, a proteção da autopropriedade fica nas mãos de contratos privados, empresas de segurança e mecanismos de mercado. Mas isso gera um paradoxo: sem uma instância capaz de regular, julgar e impor limites, a autopropriedade acaba nas mãos de quem tem mais poder, mais dinheiro ou mais força. Em vez de garantir liberdade, a ausência de um pacto comum abre espaço para a falsa noção de que os "mais fortes" merecem dominar e os "mais fracos" devem se submeter à sua vontade, como se essa hierarquia fosse natural ou justa.
Essa discussão é ainda mais delicada quando falamos do corpo: tanto no liberalismo quanto no feminismo, o corpo é o primeiro lugar onde se experimenta a liberdade. Mas a liberdade não é uma condição natural – é uma construção política e histórica. Judith Butler, por exemplo, lembra que a autonomia corporal depende de uma rede de relações que sustenta e reconhece o indivíduo. Silvia Federici, por sua vez, mostra como a história do capitalismo está marcada pela expropriação violenta dos corpos das mulheres, o que torna a luta por soberania corporal inseparável das condições econômicas e sociais.
Assim, tanto a afirmação feminista quanto a liberal partem do mesmo ponto: a necessidade de afirmar a dignidade e a autonomia de cada pessoa. Mas ambas dependem de um pano de fundo coletivo. A autopropriedade não é um dado natural – é uma construção social. Ela só existe de fato quando reconhecida por uma ordem comum. Não se trata apenas de liberdade no papel, mas de condições reais – materiais e institucionais – que tornem essa liberdade possível.
Quando alguém diz "meu corpo, minhas regras" ou "sou dono de mim mesmo", não está apenas fazendo uma afirmação individual: está pedindo que essa autonomia seja reconhecida e garantida por todos. Essas expressões, por mais que soem individuais, só ganham força quando amparadas por um contexto social capaz de protegê-las. No fim das contas, a soberania do corpo é sempre um ato político.
Sob outra luz, é possível ainda lançar um olhar conceitual mais radical sobre esses dois polos de discurso. A ideia de autopropriedade, ao negar sua dependência de um contrato social e insistir na soberania absoluta do indivíduo, corre o risco de se aproximar do que chamo de Selvageria Conceitual – conceito em que o poder não encontra barreiras éticas, jurídicas ou comunitárias, e a liberdade se converte em domínio. A autopropriedade, sem regulação coletiva, se transforma numa liberdade hostil, onde a força substitui o direito e o individualismo degenera em violência conceitual. Assim, a própria noção de ser dono de si mesmo, se levada às últimas consequências sem mediação social, implode na ausência de limites compartilhados, retornando à selvageria como forma extrema de liberdade e direitos desestruturados.
Por outro lado, a reivindicação feminista de "meu corpo, minhas regras" pode ser vista, em sentido filosófico mais elaborado, como uma exigência fundada no que chamo de um Biocritério – termo que designa um princípio de discernimento ético, político e epistêmico a partir da vida e de suas condições materiais. O feminismo, ao lutar pela autonomia corporal, não está apenas pedindo reconhecimento de uma propriedade sobre o corpo, mas invocando um critério vital de justiça, igualdade e legitimidade. O corpo feminino, historicamente apropriado, explorado e silenciado, torna-se então o campo primeiro de uma crítica biopolítica que redefine o que é justo, o que é digno e o que é possível. O "meu corpo" torna-se critério de mundo, e suas regras, exigências de uma nova política da vida.
Entre a Selvageria Conceitual da autopropriedade radical e o Biocritério encarnado na luta feminista, revela-se um dilema contemporâneo: liberdade sem mediação social pode ser apenas outra forma de dominação; já a luta pelo corpo como critério de justiça redefine a liberdade como construção coletiva. Eis o desafio: pensar o corpo não apenas como posse, mas como território ético.
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