Por Adu Verbis
Estamos numa era em que a ideia de ressignificar tem um certo contexto de varinha mágica, como se, ao apontar a varinha mágica do ressignificar para certos temas, logo se atribuísse um novo significado a alguns temas ou a alguém. Mas não é bem isso que acontece, pois a vida não é um programa que se atualiza e corrige um bug.
Além da busca de simetrias por meio da ressignificação, há também as questões de afeto. Por isso, estar perto do outro hoje pede um certo jogo de cintura e o uso de um filtro conceitual para se aproximar do outro sem que o outro se sinta julgado, mas sim amado e respeitado do jeito que é.
Porém, tem uma coisa que vem me chamando atenção nos "consultórios da internet": uma cena que vem se repetindo. Ou seja, mulheres adultas embalam, alimentam, passeiam e até levam ao pediatra bonecos hiper-realistas de silicone.
Esses bebês são chamados de reborn – "renascido". São imitações quase perfeitas de recém-nascidos que viralizaram nas redes sociais, onde mulheres dedicam uma rotina de cuidados materna – só que voltada para um objeto. Entre o espanto e o julgamento, esse fenômeno levanta uma pergunta mais profunda: o que está sendo transferido para esses bonecos? Afeto, carência ou algum sentimento misturado com modismo e consumo?
E mais: o que será que Freud diria? O decifrador de fantasmas – como gosto de chamá-lo – talvez visse nisso uma forma de amor totemizado. Um amor que parece não ter retorno, mas que carrega uma força simbólica – uma energia emocional quase ritualística
A Maternidade Que Se Desfez do Destino
Durante séculos, a maternidade foi o centro da identidade feminina. Ser mulher era, basicamente, ser mãe – ou pelo menos desejar ser. Mas esse modelo foi ruindo. Com as lutas feministas, o acesso à educação, a autonomia sobre o próprio corpo e os novos modos de viver, ser mãe deixou de ser destino e virou escolha.
E aí surge um novo tipo de vazio: o que fazer com o afeto que, antes, era canalizado na criação de filhos? Até porque, criar filhos também era uma forma de cumprir um projeto social – de povoar o mundo, de dar continuidade à espécie e de ocupação política.
Hoje, as taxas de natalidade estão caindo em quase todo o Ocidente. A maneira como as pessoas vivem a maturidade mudou. Ter filhos já não é mais o símbolo inevitável da realização. Com isso, a maternidade começa a ganhar outras formas: simbólicas, afetivas, reinventadas.
Do Pai Totêmico ao Bebê Totêmico
Em Totem e Tabu, Freud propôs uma das hipóteses mais inquietantes da psicologia: os antigos humanos, ao matarem o pai tribal – símbolo da lei e da repressão – teriam transformado essa figura em um totem, uma imagem sagrada que preserva a memória do desejo e do interdito. A sociedade, então, passa a girar em torno desse símbolo, que ocupa o lugar da ausência e ressignifica a figura do pai ou da mãe tribal.
Se a gente traz essa lógica pro presente, o reborn seria um tipo de totem invertido – não o pai morto, mas o filho que não nasceu, a maternidade que não se concretizou, o laço que se deseja sem o peso da convivência real e sem julgamento.
Assim como o totem organizava os impulsos do grupo, o reborn regula afetos internos, ou simulados. Ele se torna um canal para projetar amor, cuidado e sentido – mas num corpo que não reage, não exige, não se frustra, embora seja um objeto carregado de ressignificação.
Transferência de Afeto e Vínculo Sob Controle
A psicanálise fala muito sobre transferência de afeto – quando sentimentos profundos, muitas vezes inconscientes, são redirecionados pra pessoas, objetos ou símbolos. Isso acontece no divã, mas também fora dele: no carinho por um pet, na idolatria por uma celebridade, no apego a um objeto antigo da infância.
Hoje, essa transferência tem acontecido cada vez mais com entidades não humanas: animais de estimação, assistentes virtuais, personagens fictícios… e, claro, os bebês reborn. É como os japoneses com o Tamagotchi – aquele bichinho virtual lançado pela Bandai em 1996. O nome, aliás, vem da mistura de tamago (ovo) com o sufixo carinhoso -tchi. Portanto, o afeto tem seus aspectos virtuais: existente apenas em potência ou como faculdade, mas nem sempre tem um efeito real.
Não sei se a relação dessas mulheres com seus reborns é uma forma de amor sem risco, um tipo de vínculo sob controle. O reborn não morre, não chora, não desaparece. Mas deve haver ali alguma forma de morte simbólica – como nas meninas que enjoavam de uma boneca e pediam aos pais para comprar outra. O reborn permanece, servindo de espelho para o cuidado que se deseja oferecer. Um totem de silicone que acolhe, mas não olha de volta – ao contrário das crianças reais, que nos obrigam a decifrar seus mundos pelos olhos delas.
Mas há algo que sempre observei na forma como as mães lidam com suas crias: elas exploram um lado lúdico que, por vezes, pode parecer artificial. Ainda assim, é nesse jogo que se revela um modo de cuidar, educar e preparar a criança para a vida. Talvez a ritualização lúdica com os reborns guarde alguma referência ao brincar de boneca – não mais como um treino para o “instinto materno”, mas como uma forma simbólica de afeto e construção de sentido num mundo que a todo momento cobra a ressignificação de temas e de alguém.
Totens Domésticos de Uma Era Pós-Humana
Byung-Chul Han fala sobre o "desaparecimento do outro" na era digital. Ao invés de lidarmos com o outro, que nos desafia, preferimos espelhos que apenas validam nossas emoções. O reborn seria esse tipo de espelho – não um filho com subjetividade própria, mas um reflexo da fantasia da maternidade sem conflito, ou até um espelho de uma emoção doente e reprimida, ou uma forma pragmática de satisfação, conquistada por meio de likes.
Freud talvez não ficasse surpreso com esse fenômeno. Ele veria os reborns como sintomas culturais, respostas subjetivas a um mal-estar civilizatório. Em um mundo onde o amor é risco, a maternidade é uma escolha, e a solidão é estrutural, essas figuras substitutas se tornam totens sentimentais, maneiras de não sucumbir ao vazio.
A Transferência de Afeto Também é um Pedido
Talvez, no fundo, o bebê reborn não seja apenas um simulacro, nem um desvio afetivo ou emocional. Talvez seja um pedido silencioso por vínculo, por significado – por uma forma de amar que não nos destrua. A mulher que o trata como um filho pode estar apenas tentando, à sua maneira, manter acesa a chama de um desejo arquetípico: o de criar laços em um mundo cada vez mais desencantado, mergulhado em violências – conceituais e físicas. A violência atravessa a todos, deixa vestígios e ressignifica os afetos.
E, assim, Freud, ao final, não julgaria. Ele escutaria. E perguntaria:
"O que você ama, quando ama esse boneco?"
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