sábado, 21 de junho de 2025

Israel: entre a democrática e as raízes religiosas – será que Israel não é uma teocracia liberal?


Por Adu Verbis

Desde que comecei a me interessar pela política do Oriente Médio, Israel sempre me pareceu um caso peculiar. Um país que se apresenta ao mundo como uma democracia vibrante, moderna, com instituições sólidas e direitos civis assegurados. Mas, quanto mais me aprofundei, mais difícil ficou sustentar essa imagem de uma democracia plena. 

Existe no Estado de Israel uma camada quase invisível para quem observa apenas a superfície, especialmente quando a referência são os outros países da região, pois a essência religiosa do Estado é cuidadosamente trabalhada sob um verniz de democracia liberal.

Quando ouvi pela primeira vez o termo “teocracia liberal” aplicado a Israel, confesso que pareceu uma contradição. Afinal, teocracia remete a um governo dominado por líderes religiosos, enquanto liberalismo associa-se à separação entre religião e Estado, direitos civis garantidos e pluralismo. Mas a realidade pode ser mais complexa, e Israel é um exemplo perfeito dessa complexidade pluralista.

O que seria, então, uma teocracia liberal? É um regime onde elementos religiosos estruturam e fundamentam o Estado, influenciando leis, políticas e a identidade nacional, mas que ao mesmo tempo mantém instituições democráticas, liberdades civis e permite certa diversidade interna que aos olhos do mundo é uma vitrine democrática.

E ao ouvir a expressão Estado judeu, já começo a sentir o peso da contradição. Como conciliar um regime definido por uma identidade religiosa com os princípios universais de cidadania, igualdade e laicidade? Essa pergunta me acompanha sempre que observo decisões do parlamento israelense ou debates envolvendo partidos religiosos e sua teologia do Pentateuco.

Curiosamente, essa ambiguidade não é fruto do acaso, mas de uma engenharia política. Os fundadores de Israel, em sua maioria judeus europeus, eram seculares, educados em universidades ocidentais e familiarizados com o nacionalismo moderno. Mas entenderam desde cedo que a linguagem religiosa era um recurso poderoso para mobilizar pessoas, justificar reivindicações territoriais e garantir apoio internacional e formar uma comunhão em torno do tema Estado judeu.

Lembro que, ao ler pela primeira vez a Declaração de Independência de Israel, fiquei impressionado com o equilíbrio, ou talvez a tensão, entre o discurso dos direitos universais e as referências bíblicas. Era como se o texto tivesse sido cuidadosamente escrito para agradar tanto à ONU quanto aos rabinos. Essa duplicidade permanece até hoje como uma marca estrutural do Estado, alimentando não apenas suas contradições internas, mas também suas ambições geopolíticas.

Fico a imaginar como teria sido se o processo de fundação tivesse sido conduzido por judeus orientais (sefarditas e mizrahim), vindos do Marrocos, Iraque e Iêmen, com uma relação mais visceral à religião e menos influenciados pelo racionalismo e colonialismo europeu. Provavelmente, o Estado teria sido mais abertamente teocrático desde o início, talvez com uma configuração institucional mais próxima das sociedades religiosas do Oriente Médio, sem tanta preocupação em parecer uma democracia ocidental.

O que me parece mais revelador é como essa roupagem liberal, ao longo dos anos, se tornou um verdadeiro mecanismo de sobrevivência. Israel não é apenas um país para judeus europeus seculares. Hoje, convive com uma população ultraortodoxa em expansão, judeus orientais com tradições conservadoras e uma minoria árabe que, por sua simples presença e cidadania, desafia o projeto sionista. 

Sem um mínimo de pluralismo formal, o risco de colapso interno seria real, afinal, ser judeu não se resume apenas à religião; mas, paradoxalmente, a religião é a base ontológica da identidade judaica. Por outro lado, sem ao menos a aparência de uma democracia, o custo diplomático para sustentar a legitimidade do Estado judeu teria hoje outras configurações e pressões internacionais ainda maiores.

Ainda assim, apesar das eleições, da Suprema Corte ativa e da "liberdade de imprensa", não posso ignorar os sinais de que o eixo central da estrutura do país continua sendo a religião. Quem pode ser cidadão, quem pode se casar com quem, quais direitos as minorias podem reivindicar – tudo isso passa, direta ou indiretamente, pelo crivo das instituições religiosas, revestido por um verniz liberal.

A tensão entre a necessidade de parecer uma democracia plena e a realidade de ser um Estado fundado em uma identidade religiosa é uma linha tênue que Israel continua a percorrer. Não vejo como o país possa se desvencilhar do caráter teocrático que é sua essência. Ao olhar mais atentamente, percebo que o verdadeiro motor que sustenta o Estado não é a democracia, mas a religião, que utiliza a linguagem dos direitos civis para formar um Estado que oscila entre a democracia e a teocracia liberal.

Essa arquitetura institucional não é apenas uma curiosidade histórica; tem efeitos concretos no cotidiano. Desde o fechamento de serviços públicos no Shabat até a definição de quem pode ser reconhecido oficialmente como judeu, a religião permeia esferas que, em outras democracias, seriam regidas por princípios civis.

Nesse ambiente, manter uma imagem democrática com garantias mínimas de pluralismo e direitos civis tornou-se uma necessidade estratégica. Sem essa “vitrine liberal”, o Estado não conseguiria absorver as tensões internas dessa paradoxal combinação de teocracia e liberalismo. A questão, portanto, não é se Israel é uma teocracia liberal ou uma democracia plena, mas sim como equilibra pragmatismo político e identidade religiosa.

Israel vive uma tensão estrutural entre o desejo de ser reconhecido como uma democracia moderna e a realidade de ser um Estado fundamentado em uma identidade religiosa. Uma democracia onde a religião é critério de cidadania e onde instituições religiosas têm poder político real. Basta olhar com atenção para perceber que o eixo central do Estado é a religião, por isso, em tese e na prática, defino Israel como uma teocracia liberal.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

O individualismo fortaleceu o coletivo ou o Individualismo busca autonomia do social?

Por Adu Verbis

Ao longo da minha trajetória como leitor, curioso e palpiteiro especialista de plantão nas redes sociais, fui tomado por uma inquietação recorrente: afinal, o individualismo, em sua busca por autonomia e autenticidade, contribuiu para fortalecer o coletivo ou, ao contrário, escavou uma distância crescente em relação ao social?

Essa questão, que à primeira vista parece tautológica e com ar paradoxal, me acompanha como um espelho dos dilemas contemporâneos. Não há resposta simples: o paradoxal está justamente no fato de não haver resposta, mas, sim, conjecturas. Mas, apesar da paradoxalidade, é preciso relatar que o social não é um corpo metafísico, uma ideia abstrata, e sim algo real, e forma a base da identidade de uma nação, de um povo e de um indivíduo.

Mas antes de me aprofundar na minha inquietação vou fazer um breve rascunho da história. Durante séculos, o indivíduo foi quase uma abstração. Na sociedade feudal, por exemplo, sua identidade era dissolvida nos laços de sangue, nas obrigações religiosas e nos vínculos servis. 

O "eu" praticamente não existia como instância autônoma. Foi com o Iluminismo e, mais tarde, com o liberalismo do século XIX, que emergiu uma concepção potente do sujeito moderno: autônomo, racional, detentor de direitos inalienáveis. No entanto, uma ideia (direitos inalienáveis) que, embora aparentemente universal, escondia e esconde suas exclusões estruturais.

John Stuart Mill, em On Liberty (1859), defendeu que "a individualidade é um dos elementos essenciais do bem-estar". Para ele, a liberdade individual era não apenas um direito, mas uma condição para o florescimento coletivo. 

No entanto, é preciso tensionar essa visão: o liberalismo de Mill nasce dentro de uma ordem burguesa e patriarcal. Sua defesa da liberdade repousa sobre uma ideia de indivíduo abstrato, frequentemente desvinculado das barreiras impostas por gênero, raça e classe. 

A liberdade, em seu modelo, é mais viável para certos sujeitos do que para outros. Mulheres, trabalhadores e populações colonizadas estavam à margem desse ideal: e ainda estão. Essa regra de liberdade ainda é cultuada.

Ralph Waldo Emerson, em seu ensaio Self-Reliance (1841), leva esse pensamento a uma dimensão quase espiritual: "a confiança em si mesmo é a essência da genialidade." O indivíduo autêntico, fiel à própria voz, seria um agente de transformação moral e social. 

Essa ideia me fascinou: ao desenvolver-se plenamente, o sujeito livre contribuiria para uma coletividade mais justa, criativa e consciente. Mas, como no caso de Mill, a autonomia celebrada por Emerson parte de um sujeito idealizado, frequentemente alheio às condições sociais concretas que limitam essa mesma autoconfiança. E essa self-reliance acabou se tornando, ironicamente, o alicerce da literatura de autoajuda contemporânea.

Décadas depois, a psicologia humanista ecoaria e potencializava essa esperança. Carl Rogers, em On Becoming a Person (1961), fala da "pessoa plenamente funcional", aberta à experiência, confiante nos próprios sentimentos. Abraham Maslow, em Toward a Psychology of Being (1962), vai além: o indivíduo autorrealizado tende à empatia, ao cuidado com o outro, à consciência ampliada. Assim, o "eu" se torna ponte para o "nós". 

No entanto, mesmo esses modelos mais sensíveis à subjetividade podem ser criticados por sua ênfase no desenvolvimento pessoal que, muitas vezes, negligencia os contextos estruturais e materiais. Podemos pensar que suas teses foram facilmente absorvidas pelo mundo corporativo, transformadas em manuais de produtividade disfarçados de emancipação.

Na história brasileira, também temos tensões simbólicas relevantes. Nas fazendas coloniais, a figura do patriarca moldava o mundo simbólico e material. Em Casa-Grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre descreve um sistema em que a coletividade era rígida, desigual, autoritária. O único indivíduo com autonomia era o senhor da casa; os demais estavam submetidos a estruturas de dominação. Ainda assim, como observa Freyre, surgiam brechas: sujeitos subordinados criavam identidades híbridas, negociadas ou resistentes, identidades que participavam da ordem, mas não a transformavam.

Em Sobrados e Mucambos (1936), Freyre aponta o florescimento de práticas solidárias entre os negros escravizados: "foi no escravo negro que primeiro desabrochou no Brasil o sentido de solidariedade mais largo que o de família." No novo contexto urbano, o indivíduo emerge como agente coletivo de resistência, invertendo a lógica do individualismo como separação. Mas essa solidariedade, na verdade, remete a reminiscências da vida tribal africana: arrancada à força pelas engrenagens do escravagismo colonial.

Outros pensadores brasileiros aprofundaram essas questões. Sueli Carneiro discute o racismo como estruturante das relações sociais, afirmando que a construção da identidade negra exige uma luta constante por reconhecimento e autoestima em uma sociedade que nega sistematicamente a humanidade do outro. 

Já Abdias Nascimento propôs o conceito de quilombismo como projeto político e civilizatório em que a liberdade individual só se realiza na coletividade negra e na ancestralidade: uma forma de subjetividade que não se separa da memória, da história e da solidariedade.

Enquanto isso, Milton Santos – o intelectual negro no Brasil que mais assimilou os códigos da burguesia, e deles se alimentava com certo charme iluminista – revelou como os sujeitos subalternizados constroem espaços de resistência em meio à segregação urbana. Nas periferias, o "eu" emerge não apenas como sobrevivência, mas como produção ativa de novos modos de existir juntos.

Pensemos, por exemplo, em líderes comunitários de favelas que constroem redes de apoio em saúde, cultura e segurança alimentar. Sua autonomia não se expressa como isolamento, mas como ação engajada, coletiva. Neles, o "eu" se realiza na transformação do "nós". Porém, muitos desses sujeitos foram abandonados pelo Estado e cooptados por milícias; mais uma vez, o social falha e o individualismo relacional é sequestrado por milícias.

Chegamos ao século XXI, esse terreno ambíguo e instável. A cultura digital promoveu a individualidade como nunca antes, e também gerou distorções epistêmicas. Somos incentivados a ser "nós mesmos": autênticos, únicos, donos da própria imagem. Mas, ao mesmo tempo, assistimos à erosão do comum. As redes nos conectam e nos isolam na própria subjetividade. A autonomia virou obrigação: temos que ser bem-sucedidos, resilientes, empreendedores de nós mesmos.

Ulrich Beck, em Sociedade do Risco, analisa como o sujeito moderno carrega sozinho responsabilidades que antes eram compartilhadas. Anthony Giddens, em Modernidade e Identidade, descreve uma "modernidade reflexiva" em que o indivíduo constrói sua biografia sob constante incerteza. Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida, observa que “as relações humanas são agora mais flexíveis, mas também mais frágeis.” A liberdade virou fluidez, e a fluidez, angústia.

Nesse cenário, a autonomia também pode se tornar clausura. Alain Ehrenberg, em A Fadiga de Ser Si Mesmo (1998), mostra como o ideal de autoafirmação gerou uma subjetividade exausta, culpada por não performar o suficiente. O indivíduo soberano tornou-se um solitário hiperconectado: não com o outro ou com o mundo, mas com a própria ansiedade, que acaba sendo a matéria prima da subjetividade.

Mesmo pensadores que valorizam a individualidade, como Charles Taylor, lembram que a identidade se constrói no “espaço intersubjetivo”: não somos ilhas, mas vozes moldadas no diálogo. Axel Honneth destaca que a autonomia exige reconhecimento mútuo. Não há eu sem outro. Não há liberdade sem vínculo com as leis, com a cidade e com o bairro.

Então, volto à pergunta: o individualismo fortaleceu o coletivo ou busca autonomia do social?

A resposta talvez não esteja em escolher entre um e outro, mas em compreender a qualidade da relação entre ambos. Sinalizo aqui a ideia de um individualismo relacional: uma forma de subjetividade que reconhece o outro como parte constitutiva de si.

Essa concepção se ancora na noção de que a identidade é sempre construída em relação, como argumentam François de Singly, ao destacar a individuação como processo relacional, e Danilo Martuccelli, ao propor o indivíduo moderno como estruturado pelo social e em prol do social.

Práticas que exemplificam esse modelo podem ser vistas em economias solidárias, cooperativas, redes de cuidado, círculos restaurativos, formas em que o sujeito não abdica de si, mas encontra potência na interdependência. No entanto, para que o individualismo relacional seja possível, é preciso curar a dicotomia entre individualidade e autonomia.

Autores contemporâneos esboçam esse caminho. Judith Butler propõe uma ética da vulnerabilidade; Paul Ricoeur vê na alteridade a condição da identidade; a psicologia comunitária aponta para sujeitos inseridos em redes de pertencimento e ação. Mas, para que essas ideias produzam efeitos, é preciso antes querer esse tipo de relação.

Portanto, entre o eu e o nós, não basta equilíbrio. É preciso ver o outro, colocar o outro na escuta subjetiva do eu. Porque só quando o sujeito encontra o outro, toma noção de si – pelo susto, pela tensão que o outro causa. O outro nunca é neutro à nossa subjetividade.

O outro sempre interfere porque somos animais políticos: sujeitos de desejo, de disputa e, sim, muitas vezes, portadores de patologias. A liberdade, que poderia ser compartilhada, tornou-se também um processo de indiferença. No entanto, vejo que o individualismo no século XXI busca uma autonomia em relação ao social; porém, o outro será sempre o social, porque o social é mais real do que o próprio eu.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Milieu Ambiant - Environment - Meio Ambiente



Por Adu Verbis


Ao longo da minha trajetória como curioso, de escutas, leituras e reflexões, me deparei com uma pergunta que parece simples, mas carrega implicações filosóficas, linguísticas e ecológicas: faz sentido dizer “meio ambiente”? Ou não bastaria apenas “ambiente”?

A discussão gira em torno da origem e do sentido dessa expressão tão presente no cotidiano e consagrada na língua portuguesa, mas que, para alguns, carrega uma suposta redundância, como se fosse uma tradução literal e inadequada de um pleonasmo francês: milieu ambiant. Mas o que quer dizer milieu ambiant?

No próprio francês, milieu ambiant é considerado um pleonasmo. Costuma-se argumentar que a palavra “ambiente” já contém o sentido de “meio”, o que faria da expressão “meio ambiente” uma redundância ou mesmo um pleonasmo. Um pleonasmo elegante, que se contrapõe à deselegância de “subir para cima”, “descer pra baixo”, “ver com os próprios olhos” ou “goteira no teto”. Eu gosto de “goteira no teto”. Eu gosto de goteira no teto? Quiz dizer que gosto da expressão “goteira no teto” e não de goteiras.

No português, a expressão “meio ambiente” muitas vezes soa como meio, sinônimo de parte de uma coisa equidistante, ou mesmo como um ambiente pela metade. Contudo, diante das condições climáticas atuais, é possível acreditar que meio ambiente é realmente um ambiente pela metade, porque a outra metade foi destruída.

Bem, no inglês, optou-se por uma forma mais sintética: environment, que abarca a ideia de meio enquanto um conjunto de elementos que envolvem e carregam o sentido de algo que tem uma envolvência que se estrutura por meio de uma circunstância e consequência.

Há quem diga, inclusive, que “meio ambiente” foi apenas uma tradução direta de milieu ambiant, que se consagrou mesmo sendo considerado um pleonasmo em seu idioma nativo, o francês. Entretanto, milieu (medium) e ambiant (ambiens) têm base etimológica no latim: medium ambiens – o meio que envolve.

Contudo, embora ‘meio’ e ‘ambiente’ possam ser usados como sinônimos em certos contextos, seus sentidos originais são diferentes. ‘Meio’ refere-se ao espaço dinâmico, ao canal ou processo por onde algo passa ou acontece. Já ‘ambiente’ designa o espaço ao redor, o cenário que envolve algo de forma mais estática.

Quando unidos na expressão ‘meio ambiente’, formam um substantivo composto que designa o conjunto das condições e espaços que cercam e sustentam a vida, um conceito único que, do ponto de vista linguístico, eu não vejo como redundante, mas sim complementar.

O “ambiente”, da forma como costumamos entendê-lo, é quase como um palco onde a ação acontece. Há nele uma certa inércia, uma condição dada. O “meio”, por sua vez, parece carregado de energia: é o que conecta, atravessa, transmite. É o processo em si.

No entanto, essa união acaba produzindo algo mais denso: não resulta em um sinônimo único e simplificado, mas em uma expressão composta que carrega peso próprio e articula duas noções distintas.

O termo deixa de ser visto como repetição vazia e passa a nomear uma realidade complexa, justamente por fundir dimensões que, embora próximas, não são equivalentes. A linguagem, nesse caso, não colapsa os sentidos; ela os mantém em tensão, e é essa tensão que sustenta a expressividade do termo meio ambiente.

Em vez de redundância, vejo que a expressão revela uma tensão produtiva entre dimensões complementares: o que age e o que acolhe a ação, o movimento e o suporte, o agente e o contexto.

Essa estrutura de duplo pertencimento, em que algo existe ao mesmo tempo como força e como forma, como acontecimento e como condição, reaparece em diversos campos do saber: na física, entre partícula e campo; na biologia, entre organismo e habitat; na música, entre melodia e harmonia.

Portanto, “meio ambiente”, nesse sentido, não é um excesso linguístico, que pode ser definido como pleonasmo, mas uma fórmula expressiva para nomear a coemergência, o que significa que não são entidades isoladas, mas surgem e se definem um em relação ao outro entre o que se move e o mundo que o permite mover-se.

Na física, especialmente na termodinâmica, um sistema pode permanecer em equilíbrio, parado, inerte, até que algo externo atue sobre ele: uma força, uma energia, uma pressão. Nesse contexto, o meio é o agente da transformação. É ele que rompe a inércia, que gera consequências. O ambiente é o estado de fundo; o meio, a força que movimenta. Juntos, se revelam como polos de uma ecologia: permanência e mudança, resistência e impulso.

No entanto, essa distinção física reverbera também na linguagem. Etimologicamente, ambiente (de ambiens, o que cerca) carrega o sentido de envolvimento passivo: o entorno. Já meio (do latim medium) remete ao que está entre, o canal, o espaço de passagem, frequentemente associado à ideia de mediação.

Na linguagem, “meio” assume o papel dinâmico de veículo do sentido, aquilo que transporta e transforma, como um discurso, um estilo, uma forma de expressão. “Ambiente”, por outro lado, sugere o cenário discursivo, o contexto onde os sentidos circulam: cultural, histórico, ideológico e suas circunstâncias e consequências.

Assim como na física, meio e ambiente se entrelaçam: um atua, o outro dá a moldura. A linguagem se dá nesse campo de tensão: entre a estabilidade do contexto e a instabilidade da mensagem que o atravessa, e seus contextos e sinônimos.

Na ecologia, o ambiente pode ser visto como o conjunto das condições físicas e químicas que definem um habitat: temperatura, umidade, luz. Já o meio é a rede de interações entre os organismos, os fluxos vitais, as trocas constantes que constroem a vida.

O ambiente é o dado; o meio, o que se desenrola entre os seres vivos. Como sugere Gregory Bateson, o meio ecológico é uma teia viva e em constante movimento. Já o ambiente é o espaço que acolhe essa teia. E essa teia acaba representando simultaneamente o meio e o ambiente.

Na filosofia da linguagem, o ambiente pode ser entendido como o contexto de uma fala: lugar, tempo, interlocutores. O meio seria o que permite a circulação da mensagem: a linguagem viva, os gestos, o tom.

Autores como Roman Jakobson destacam que o meio é o canal que possibilita a comunicação, enquanto o ambiente é o campo que permite interpretar o que é dito. Nesse sentido, “meio ambiente” representa também a união entre a potência da comunicação e o espaço que a torna compreensível, porque o meio conduz.

A expressão milieu ambiant surgiu na França do século XIX, em contextos científicos e filosóficos, para designar o conjunto de condições que circundam um organismo. Ao ser traduzida para o português como “meio ambiente”, ganhou vida própria, especialmente a partir do século XX, com o avanço das questões ecológicas na esfera política e cultural e com o crescimento da desigualdade.

O filósofo francês Henri Bergson, por exemplo, desenvolveu a noção de milieu como o espaço vital que molda a consciência e a ação, destacando seu caráter fluido e dinâmico. Para ele, o “meio” não é apenas pano de fundo, mas um elemento ativo da existência.

Já o ecólogo Eugene Odum, considerado o pai da ecologia de sistemas, ressaltou a interdependência das partes que compõem o meio ambiente, mostrando que ele não é uma simples coleção de elementos, mas um sistema dinâmico e integrado.

A crítica feita por quem considera o termo “meio ambiente” um pleonasmo, e acha que o mais adequado seria apenas “ambiente”, muitas vezes ignora essa complexidade histórica e conceitual dos termos, e reforça a polarização entre saber acadêmico e saber popular. Uma língua também é feita de beleza e de feiura.

Portanto, vejo que “meio ambiente”, mesmo quando considerado um pleonasmo, é na verdade um eufemismo que suaviza uma questão complexa, com implicações filosóficas, linguísticas e ecológicas.

Por isso, para mim, “meio ambiente” até pode ser considerado um pleonasmo, porém, contraditoriamente, não o vejo como uma redundância ou um vício pleonástico. Trata-se de uma expressão rica, que carrega consigo a complexidade de uma disputa entre o domínio do discurso especializado, que, aliás, não consegue frear o discurso corrente e popular, que geralmente é predominante. E isso mostra que não existe um proprietário da língua, mas saberes, imensos num meio, que administram consequências e circunstâncias do ambiente.

O termo “meio ambiente” nos lembra que o mundo não é um cenário estático, mas um campo de trocas contínuas entre uma ambiência e um meio-duto. Que viver é estar circundado e envolvido, e também ser parte ativa daquilo que nos envolve, conduz e gera equilíbrio ou desequilíbrio.

Portanto, o meio social gera mais desequilíbrio do que propriamente equilíbrio ao meio ambiente, e, para notar isso, basta observar a história e suas circunstâncias e consequências.

domingo, 1 de junho de 2025

A Teologia da Promessa


 Por Adu Verbis

Sempre pensei que algumas religiões não se expandiram pela fé, mas, sobretudo, pela força e pela doutrinação. Colonizaram corpos, terras e consciências com espadas e cruzes, com pactos e impérios. O caso do judaísmo, no entanto, sempre me provocou uma inquietação distinta: ele não colonizou como as demais.

O judaísmo não se impôs pela conquista, mas concentrou, ao longo dos séculos, um dos mais persistentes e intensos anseios por território que a história conheceu. Esse desejo, marcado mais por um impulso de retorno do que de expansão, ganha novo contorno com o surgimento do sionismo, que articula um nacionalismo de raízes abrâmicas e culmina na construção do Estado de Israel.

Não é exagero dizer que o judaísmo é a mãe do cristianismo e do islamismo, mas foi o único dos três que não teve impérios, conquistas globais ou batismos forçados. E isso não por pura escolha, mas por uma condição histórica. Começa com os hebreus: um povo pequeno, nômade, vindo de fora. Não tinham a estabilidade territorial dos cananeus nem o aparato militar dos grandes impérios que dominavam a região: assírio, babilônico, persa, grego e romano.

É importante salientar: antes da chegada dos assírios, os israelitas mantinham controle político e religioso em Canaã, com o Reino do Norte (Israel) e o Reino do Sul (Judá) como entidades independentes, e a teologia da promessa parecia, então, cumprida. Porém, a expansão assíria no século VIII a.C. marcou o início do declínio do poder judeu em Canaã. Em 722 a.C., o Reino do Norte foi conquistado, sua capital Samaria destruída, e parte da população exilada. O Reino do Sul resistiu mais tempo, mas tornou-se um estado vassalo, pagando tributos e perdendo autonomia.

Dessa forma, o judaísmo desenvolveu-se sem os instrumentos típicos de poder imperial, como campanhas militares para expansão religiosa – refletindo assim a condição histórica do povo hebreu: vindo de fora, ocupando a tal terra prometida, mas, com a perda do poder político e religioso, fora submetido frequentemente a impérios. Essa limitação territorial e política influenciou sua trajetória, moldando sua identidade e suas práticas religiosas sem recorrer à força ou à dominação.

Como sabemos, os hebreus vieram de Ur, cidade suméria ao sul da Mesopotâmia, passaram pelo Egito, vagaram pelo deserto e, quando enfim se fixaram em Canaã, já o fizeram com uma teologia monoteísta que se opunha ao henoteísmo nativo (crença em vários deuses com devoção principal a um deles); e, de modo conceitual, passaram a praticar uma colonização espiritual, amparados por uma promessa de uma divindade unipotente, onipresente, íntima e protetora.

Essa promessa não era um detalhe: era o centro do poder do Reino do Norte e do Sul. E, enquanto nômade, o povo hebreu criou a teologia da promessa, dividida entre chegada, retorno e ocupação do que fora prometido. Por isso, mesmo sem território, o judaísmo sobreviveu. Fez da Lei o seu chão, da Torá o seu templo. Assim atravessou desertos e séculos, vivendo sob impérios alheios, mas mantendo viva a chama: um dia, voltaríamos à terra prometida. Sem a teologia da promessa, talvez a identidade se dissolvesse nos percalços do deserto.

A lógica dessa teologia antecede até mesmo a era das fronteiras e das cidades-estado. Mesmo nesse mundo arcaico, os hebreus conheceram o exílio – não como perda de uma pátria estabelecida, mas como distanciamento de um eixo simbólico de pertencimento. Não possuíam a terra: mas caminhavam em direção a ela. E caminhavam conduzidos pela promessa de ocupá-la.

A terra prometida não era apenas destino geográfico, mas o centro gravitacional de um enredo teológico. Quando esse horizonte foi interditado, a promessa se fortaleceu: o caminhar só fazia sentido porque havia algo a ser reencontrado. Sem cidade nem templo, fizeram do texto o espaço sagrado e da memória, um chão simbólico. Mesmo dispersos, não deixaram de ser. A promessa, ainda que adiada, permaneceu como solo invisível sob os pés.

Curiosamente, essa mesma promessa – reinterpretada – atravessa também as raízes do cristianismo e do islamismo. Mas, ao contrário do judaísmo, essas duas tradições não se sustentaram sobre a terra, e sim sobre a ideia de um cumprimento mais amplo: o Reino de Deus, o Paraíso, a Umma (a comunidade espiritual islâmica, que transcende etnias e culturas). Ainda assim, foi o solo da promessa, semeado na teologia da terra prometida, que deu raízes ao tronco comum das três religiões, como se fossem frutos distintos de uma mesma árvore.

O cristianismo, ao tornar-se religião imperial, abandonou o anseio territorial. Sua expansão foi espiritual e administrativa. O islamismo, desde o início, articulou fé e poder político, formando califados que se estenderam da Ásia Central ao norte da África. Ambos colonizaram. O judaísmo, não. Permaneceu à margem, como religião-mãe, que resiste na preservação da promessa. Isso, porém, gerou um efeito curioso: todo o peso teológico da promessa se concentrou em um único ponto geográfico. Tudo o que não se conquistou no mundo deveria se realizar na Palestina – ou na atemporal Canaã bíblica.

Por isso considero o processo moderno em Israel uma colonização teológica e política iniciada com a chegada dos hebreus na Canaã bíblica e continuada na Canaã real – que hoje conhecemos como Palestina. Como os hebreus foram impedidos de permanecer em sua terra prometida e de expandir seu poder político e teológico, concentraram suas forças na teologia da promessa sobre uma terra específica, tornando-a a encarnação histórica da promessa: ocupar, controlar e purificar o solo prometido – o lar simbólico e atemporal.

E é aí que espiritualidade, história e política se confundem. Para que a promessa se cumpra, cultiva-se a ideia de que é preciso expulsar os que não são vistos como herdeiros legítimos de Abraão. Se antes o obstáculo eram os cananeus com seu henoteísmo, depois os impérios com seu politeísmo, hoje são os palestinos.

Mas, ao falarmos em palestinos, é preciso lembrar que entre eles há cristãos, judeus e islâmicos, assim como é necessário mencionar o Neturei Karta, grupo de judeus ortodoxos antissionistas que rejeitam a validade do Estado de Israel por entenderem que a restauração da terra prometida só deve ocorrer com a vinda do Messias, representando, assim, um paradoxo dentro da própria teologia judaica.

A restauração da terra prometida, como defendida pelo Neturei Karta, também se apoia na teologia da promessa. No entanto, seu viés é mais religioso e doutrinário, e menos político e separatista – ao contrário do sionismo, que ao longo de sua história tem buscado aplicar essa promessa alimentado pela ideia de que é preciso expulsar os que não são reconhecidos como herdeiros legítimos de Abraão.

Portanto, na lógica sionista, os palestinos cristãos, islâmicos e até mesmo os judeus do Neturei Karta representam uma negação da profecia. O sionismo enxerga a resistência palestina não apenas como uma questão política ou de direito, mas como uma heresia contra a promessa da terra prometida.

Se o cristianismo colonizou o mundo e o islamismo formou impérios, o judaísmo condensou sua teologia numa terra minúscula. E o resultado é uma tensão infinita: quando a fé se converte em promessa de posse e a história em instrumento de legitimação, cada pedra vira sagrada, cada fronteira se torna dogma, cada inimigo: uma negação do destino prometido.

Talvez o estado de espírito do judaísmo sionista seja o do nômade hebreu que vem de fora para ocupar o que foi prometido. Mas, em uma perspectiva mais ampla, vejo que o judaísmo, como mãe do cristianismo e do islamismo, deixa de ser nômade e torna-se nativo onde suas filhas chegaram com uma proposta de unidade espiritual.

Por isso, o conflito atual não é apenas territorial. É um confronto entre memórias, política e simbologia espiritual. Entre enredos de origem e vidas já enraizadas. A teologia da promessa não se contenta em vencer: ela exige a confirmação de que a história sempre esteve certa. E rejeita qualquer negociação possível com a promessa de Deus. O que se disputa é a interpretação legítima de um passado bíblico – que só tem validade para os que são devotos da teologia da promessa.

Pensadores judeus, cristãos e islâmicos já refletiram sobre essa intersecção entre fé, território, política e poder simbólico. Edward Said, em Orientalismo, denuncia as construções simbólicas, culturais e políticas que sustentam projetos de dominação sobre o Oriente, incluindo a Palestina. Ilan Pappé, em A limpeza étnica da Palestina, descreve a fundação de Israel como parte de um projeto sistemático de expulsão dos árabes palestinos. Shlomo Sand, em A invenção do povo judeu, questiona os fundamentos históricos da identidade nacional judaica usados para justificar o sionismo. Já Rashid Khalidi, em Palestina: um século de guerra e resistência, analisa a longa trajetória do conflito e da resistência do povo palestino.

Essas vozes indicam que o enredo teológico não existe isolado, mas serve – e é servido – por projetos políticos concretos. A promessa divina, nesse contexto, não é apenas uma questão de fé, mas um motor ideológico que molda fronteiras, identidades e conflitos dos antigos hebreus como um povo em busca de um lar. No entanto, é a própria essência nômade que se torna a força motriz para edificar um poder simbólico – aquele prometido no deserto por um messias que está por vir, pois esse messias, metafisicamente, é nômade.

Portanto, sem ofender ontologicamente o ser do judaísmo, pergunto-me: é o judaísmo a gênese do nomadismo, ou o nomadismo a gênese do judaísmo? Ou será que, no fundo, o espírito nômade é a única raiz verdadeiramente interna de um Estado formado por tudo o que veio de fora, protegido pela teologia da promessa?