domingo, 1 de junho de 2025

A Teologia da Promessa


 Por Adu Verbis

Sempre pensei que algumas religiões não se expandiram pela fé, mas, sobretudo, pela força e pela doutrinação. Colonizaram corpos, terras e consciências com espadas e cruzes, com pactos e impérios. O caso do judaísmo, no entanto, sempre me provocou uma inquietação distinta: ele não colonizou como as demais.

O judaísmo não se impôs pela conquista, mas concentrou, ao longo dos séculos, um dos mais persistentes e intensos anseios por território que a história conheceu. Esse desejo, marcado mais por um impulso de retorno do que de expansão, ganha novo contorno com o surgimento do sionismo, que articula um nacionalismo de raízes abrâmicas e culmina na construção do Estado de Israel.

Não é exagero dizer que o judaísmo é a mãe do cristianismo e do islamismo, mas foi o único dos três que não teve impérios, conquistas globais ou batismos forçados. E isso não por pura escolha, mas por uma condição histórica. Começa com os hebreus: um povo pequeno, nômade, vindo de fora. Não tinham a estabilidade territorial dos cananeus nem o aparato militar dos grandes impérios que dominavam a região: assírio, babilônico, persa, grego e romano.

É importante salientar: antes da chegada dos assírios, os israelitas mantinham controle político e religioso em Canaã, com o Reino do Norte (Israel) e o Reino do Sul (Judá) como entidades independentes, e a teologia da promessa parecia, então, cumprida. Porém, a expansão assíria no século VIII a.C. marcou o início do declínio do poder judeu em Canaã. Em 722 a.C., o Reino do Norte foi conquistado, sua capital Samaria destruída, e parte da população exilada. O Reino do Sul resistiu mais tempo, mas tornou-se um estado vassalo, pagando tributos e perdendo autonomia.

Dessa forma, o judaísmo desenvolveu-se sem os instrumentos típicos de poder imperial, como campanhas militares para expansão religiosa – refletindo assim a condição histórica do povo hebreu: vindo de fora, ocupando a tal terra prometida, mas, com a perda do poder político e religioso, fora submetido frequentemente a impérios. Essa limitação territorial e política influenciou sua trajetória, moldando sua identidade e suas práticas religiosas sem recorrer à força ou à dominação.

Como sabemos, os hebreus vieram de Ur, cidade suméria ao sul da Mesopotâmia, passaram pelo Egito, vagaram pelo deserto e, quando enfim se fixaram em Canaã, já o fizeram com uma teologia monoteísta que se opunha ao henoteísmo nativo (crença em vários deuses com devoção principal a um deles); e, de modo conceitual, passaram a praticar uma colonização espiritual, amparados por uma promessa de uma divindade unipotente, onipresente, íntima e protetora.

Essa promessa não era um detalhe: era o centro do poder do Reino do Norte e do Sul. E, enquanto nômade, o povo hebreu criou a teologia da promessa, dividida entre chegada, retorno e ocupação do que fora prometido. Por isso, mesmo sem território, o judaísmo sobreviveu. Fez da Lei o seu chão, da Torá o seu templo. Assim atravessou desertos e séculos, vivendo sob impérios alheios, mas mantendo viva a chama: um dia, voltaríamos à terra prometida. Sem a teologia da promessa, talvez a identidade se dissolvesse nos percalços do deserto.

A lógica dessa teologia antecede até mesmo a era das fronteiras e das cidades-estado. Mesmo nesse mundo arcaico, os hebreus conheceram o exílio – não como perda de uma pátria estabelecida, mas como distanciamento de um eixo simbólico de pertencimento. Não possuíam a terra: mas caminhavam em direção a ela. E caminhavam conduzidos pela promessa de ocupá-la.

A terra prometida não era apenas destino geográfico, mas o centro gravitacional de um enredo teológico. Quando esse horizonte foi interditado, a promessa se fortaleceu: o caminhar só fazia sentido porque havia algo a ser reencontrado. Sem cidade nem templo, fizeram do texto o espaço sagrado e da memória, um chão simbólico. Mesmo dispersos, não deixaram de ser. A promessa, ainda que adiada, permaneceu como solo invisível sob os pés.

Curiosamente, essa mesma promessa – reinterpretada – atravessa também as raízes do cristianismo e do islamismo. Mas, ao contrário do judaísmo, essas duas tradições não se sustentaram sobre a terra, e sim sobre a ideia de um cumprimento mais amplo: o Reino de Deus, o Paraíso, a Umma (a comunidade espiritual islâmica, que transcende etnias e culturas). Ainda assim, foi o solo da promessa, semeado na teologia da terra prometida, que deu raízes ao tronco comum das três religiões, como se fossem frutos distintos de uma mesma árvore.

O cristianismo, ao tornar-se religião imperial, abandonou o anseio territorial. Sua expansão foi espiritual e administrativa. O islamismo, desde o início, articulou fé e poder político, formando califados que se estenderam da Ásia Central ao norte da África. Ambos colonizaram. O judaísmo, não. Permaneceu à margem, como religião-mãe, que resiste na preservação da promessa. Isso, porém, gerou um efeito curioso: todo o peso teológico da promessa se concentrou em um único ponto geográfico. Tudo o que não se conquistou no mundo deveria se realizar na Palestina – ou na atemporal Canaã bíblica.

Por isso considero o processo moderno em Israel uma colonização teológica e política iniciada com a chegada dos hebreus na Canaã bíblica e continuada na Canaã real – que hoje conhecemos como Palestina. Como os hebreus foram impedidos de permanecer em sua terra prometida e de expandir seu poder político e teológico, concentraram suas forças na teologia da promessa sobre uma terra específica, tornando-a a encarnação histórica da promessa: ocupar, controlar e purificar o solo prometido – o lar simbólico e atemporal.

E é aí que espiritualidade, história e política se confundem. Para que a promessa se cumpra, cultiva-se a ideia de que é preciso expulsar os que não são vistos como herdeiros legítimos de Abraão. Se antes o obstáculo eram os cananeus com seu henoteísmo, depois os impérios com seu politeísmo, hoje são os palestinos.

Mas, ao falarmos em palestinos, é preciso lembrar que entre eles há cristãos, judeus e islâmicos, assim como é necessário mencionar o Neturei Karta, grupo de judeus ortodoxos antissionistas que rejeitam a validade do Estado de Israel por entenderem que a restauração da terra prometida só deve ocorrer com a vinda do Messias, representando, assim, um paradoxo dentro da própria teologia judaica.

A restauração da terra prometida, como defendida pelo Neturei Karta, também se apoia na teologia da promessa. No entanto, seu viés é mais religioso e doutrinário, e menos político e separatista – ao contrário do sionismo, que ao longo de sua história tem buscado aplicar essa promessa alimentado pela ideia de que é preciso expulsar os que não são reconhecidos como herdeiros legítimos de Abraão.

Portanto, na lógica sionista, os palestinos cristãos, islâmicos e até mesmo os judeus do Neturei Karta representam uma negação da profecia. O sionismo enxerga a resistência palestina não apenas como uma questão política ou de direito, mas como uma heresia contra a promessa da terra prometida.

Se o cristianismo colonizou o mundo e o islamismo formou impérios, o judaísmo condensou sua teologia numa terra minúscula. E o resultado é uma tensão infinita: quando a fé se converte em promessa de posse e a história em instrumento de legitimação, cada pedra vira sagrada, cada fronteira se torna dogma, cada inimigo: uma negação do destino prometido.

Talvez o estado de espírito do judaísmo sionista seja o do nômade hebreu que vem de fora para ocupar o que foi prometido. Mas, em uma perspectiva mais ampla, vejo que o judaísmo, como mãe do cristianismo e do islamismo, deixa de ser nômade e torna-se nativo onde suas filhas chegaram com uma proposta de unidade espiritual.

Por isso, o conflito atual não é apenas territorial. É um confronto entre memórias, política e simbologia espiritual. Entre enredos de origem e vidas já enraizadas. A teologia da promessa não se contenta em vencer: ela exige a confirmação de que a história sempre esteve certa. E rejeita qualquer negociação possível com a promessa de Deus. O que se disputa é a interpretação legítima de um passado bíblico – que só tem validade para os que são devotos da teologia da promessa.

Pensadores judeus, cristãos e islâmicos já refletiram sobre essa intersecção entre fé, território, política e poder simbólico. Edward Said, em Orientalismo, denuncia as construções simbólicas, culturais e políticas que sustentam projetos de dominação sobre o Oriente, incluindo a Palestina. Ilan Pappé, em A limpeza étnica da Palestina, descreve a fundação de Israel como parte de um projeto sistemático de expulsão dos árabes palestinos. Shlomo Sand, em A invenção do povo judeu, questiona os fundamentos históricos da identidade nacional judaica usados para justificar o sionismo. Já Rashid Khalidi, em Palestina: um século de guerra e resistência, analisa a longa trajetória do conflito e da resistência do povo palestino.

Essas vozes indicam que o enredo teológico não existe isolado, mas serve – e é servido – por projetos políticos concretos. A promessa divina, nesse contexto, não é apenas uma questão de fé, mas um motor ideológico que molda fronteiras, identidades e conflitos dos antigos hebreus como um povo em busca de um lar. No entanto, é a própria essência nômade que se torna a força motriz para edificar um poder simbólico – aquele prometido no deserto por um messias que está por vir, pois esse messias, metafisicamente, é nômade.

Portanto, sem ofender ontologicamente o ser do judaísmo, pergunto-me: é o judaísmo a gênese do nomadismo, ou o nomadismo a gênese do judaísmo? Ou será que, no fundo, o espírito nômade é a única raiz verdadeiramente interna de um Estado formado por tudo o que veio de fora, protegido pela teologia da promessa?

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