Por Adu Verbis
Ao longo da minha trajetória como leitor, curioso e palpiteiro especialista de plantão nas redes sociais, fui tomado por uma inquietação recorrente: afinal, o individualismo, em sua busca por autonomia e autenticidade, contribuiu para fortalecer o coletivo ou, ao contrário, escavou uma distância crescente em relação ao social?
Essa questão, que à primeira vista parece tautológica e com ar paradoxal, me acompanha como um espelho dos dilemas contemporâneos. Não há resposta simples: o paradoxal está justamente no fato de não haver resposta, mas, sim, conjecturas. Mas, apesar da paradoxalidade, é preciso relatar que o social não é um corpo metafísico, uma ideia abstrata, e sim algo real, e forma a base da identidade de uma nação, de um povo e de um indivíduo.
Mas antes de me aprofundar na minha inquietação vou fazer um breve rascunho da história. Durante séculos, o indivíduo foi quase uma abstração. Na sociedade feudal, por exemplo, sua identidade era dissolvida nos laços de sangue, nas obrigações religiosas e nos vínculos servis.
O "eu" praticamente não existia como instância autônoma. Foi com o Iluminismo e, mais tarde, com o liberalismo do século XIX, que emergiu uma concepção potente do sujeito moderno: autônomo, racional, detentor de direitos inalienáveis. No entanto, uma ideia (direitos inalienáveis) que, embora aparentemente universal, escondia e esconde suas exclusões estruturais.
John Stuart Mill, em On Liberty (1859), defendeu que "a individualidade é um dos elementos essenciais do bem-estar". Para ele, a liberdade individual era não apenas um direito, mas uma condição para o florescimento coletivo.
No entanto, é preciso tensionar essa visão: o liberalismo de Mill nasce dentro de uma ordem burguesa e patriarcal. Sua defesa da liberdade repousa sobre uma ideia de indivíduo abstrato, frequentemente desvinculado das barreiras impostas por gênero, raça e classe.
A liberdade, em seu modelo, é mais viável para certos sujeitos do que para outros. Mulheres, trabalhadores e populações colonizadas estavam à margem desse ideal: e ainda estão. Essa regra de liberdade ainda é cultuada.
Ralph Waldo Emerson, em seu ensaio Self-Reliance (1841), leva esse pensamento a uma dimensão quase espiritual: "a confiança em si mesmo é a essência da genialidade." O indivíduo autêntico, fiel à própria voz, seria um agente de transformação moral e social.
Essa ideia me fascinou: ao desenvolver-se plenamente, o sujeito livre contribuiria para uma coletividade mais justa, criativa e consciente. Mas, como no caso de Mill, a autonomia celebrada por Emerson parte de um sujeito idealizado, frequentemente alheio às condições sociais concretas que limitam essa mesma autoconfiança. E essa self-reliance acabou se tornando, ironicamente, o alicerce da literatura de autoajuda contemporânea.
Décadas depois, a psicologia humanista ecoaria e potencializava essa esperança. Carl Rogers, em On Becoming a Person (1961), fala da "pessoa plenamente funcional", aberta à experiência, confiante nos próprios sentimentos. Abraham Maslow, em Toward a Psychology of Being (1962), vai além: o indivíduo autorrealizado tende à empatia, ao cuidado com o outro, à consciência ampliada. Assim, o "eu" se torna ponte para o "nós".
No entanto, mesmo esses modelos mais sensíveis à subjetividade podem ser criticados por sua ênfase no desenvolvimento pessoal que, muitas vezes, negligencia os contextos estruturais e materiais. Podemos pensar que suas teses foram facilmente absorvidas pelo mundo corporativo, transformadas em manuais de produtividade disfarçados de emancipação.
Na história brasileira, também temos tensões simbólicas relevantes. Nas fazendas coloniais, a figura do patriarca moldava o mundo simbólico e material. Em Casa-Grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre descreve um sistema em que a coletividade era rígida, desigual, autoritária. O único indivíduo com autonomia era o senhor da casa; os demais estavam submetidos a estruturas de dominação. Ainda assim, como observa Freyre, surgiam brechas: sujeitos subordinados criavam identidades híbridas, negociadas ou resistentes, identidades que participavam da ordem, mas não a transformavam.
Em Sobrados e Mucambos (1936), Freyre aponta o florescimento de práticas solidárias entre os negros escravizados: "foi no escravo negro que primeiro desabrochou no Brasil o sentido de solidariedade mais largo que o de família." No novo contexto urbano, o indivíduo emerge como agente coletivo de resistência, invertendo a lógica do individualismo como separação. Mas essa solidariedade, na verdade, remete a reminiscências da vida tribal africana: arrancada à força pelas engrenagens do escravagismo colonial.
Outros pensadores brasileiros aprofundaram essas questões. Sueli Carneiro discute o racismo como estruturante das relações sociais, afirmando que a construção da identidade negra exige uma luta constante por reconhecimento e autoestima em uma sociedade que nega sistematicamente a humanidade do outro.
Já Abdias Nascimento propôs o conceito de quilombismo como projeto político e civilizatório em que a liberdade individual só se realiza na coletividade negra e na ancestralidade: uma forma de subjetividade que não se separa da memória, da história e da solidariedade.
Enquanto isso, Milton Santos – o intelectual negro no Brasil que mais assimilou os códigos da burguesia, e deles se alimentava com certo charme iluminista – revelou como os sujeitos subalternizados constroem espaços de resistência em meio à segregação urbana. Nas periferias, o "eu" emerge não apenas como sobrevivência, mas como produção ativa de novos modos de existir juntos.
Pensemos, por exemplo, em líderes comunitários de favelas que constroem redes de apoio em saúde, cultura e segurança alimentar. Sua autonomia não se expressa como isolamento, mas como ação engajada, coletiva. Neles, o "eu" se realiza na transformação do "nós". Porém, muitos desses sujeitos foram abandonados pelo Estado e cooptados por milícias; mais uma vez, o social falha e o individualismo relacional é sequestrado por milícias.
Chegamos ao século XXI, esse terreno ambíguo e instável. A cultura digital promoveu a individualidade como nunca antes, e também gerou distorções epistêmicas. Somos incentivados a ser "nós mesmos": autênticos, únicos, donos da própria imagem. Mas, ao mesmo tempo, assistimos à erosão do comum. As redes nos conectam e nos isolam na própria subjetividade. A autonomia virou obrigação: temos que ser bem-sucedidos, resilientes, empreendedores de nós mesmos.
Ulrich Beck, em Sociedade do Risco, analisa como o sujeito moderno carrega sozinho responsabilidades que antes eram compartilhadas. Anthony Giddens, em Modernidade e Identidade, descreve uma "modernidade reflexiva" em que o indivíduo constrói sua biografia sob constante incerteza. Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida, observa que “as relações humanas são agora mais flexíveis, mas também mais frágeis.” A liberdade virou fluidez, e a fluidez, angústia.
Nesse cenário, a autonomia também pode se tornar clausura. Alain Ehrenberg, em A Fadiga de Ser Si Mesmo (1998), mostra como o ideal de autoafirmação gerou uma subjetividade exausta, culpada por não performar o suficiente. O indivíduo soberano tornou-se um solitário hiperconectado: não com o outro ou com o mundo, mas com a própria ansiedade, que acaba sendo a matéria prima da subjetividade.
Mesmo pensadores que valorizam a individualidade, como Charles Taylor, lembram que a identidade se constrói no “espaço intersubjetivo”: não somos ilhas, mas vozes moldadas no diálogo. Axel Honneth destaca que a autonomia exige reconhecimento mútuo. Não há eu sem outro. Não há liberdade sem vínculo com as leis, com a cidade e com o bairro.
Então, volto à pergunta: o individualismo fortaleceu o coletivo ou busca autonomia do social?
A resposta talvez não esteja em escolher entre um e outro, mas em compreender a qualidade da relação entre ambos. Sinalizo aqui a ideia de um individualismo relacional: uma forma de subjetividade que reconhece o outro como parte constitutiva de si.
Essa concepção se ancora na noção de que a identidade é sempre construída em relação, como argumentam François de Singly, ao destacar a individuação como processo relacional, e Danilo Martuccelli, ao propor o indivíduo moderno como estruturado pelo social e em prol do social.
Práticas que exemplificam esse modelo podem ser vistas em economias solidárias, cooperativas, redes de cuidado, círculos restaurativos, formas em que o sujeito não abdica de si, mas encontra potência na interdependência. No entanto, para que o individualismo relacional seja possível, é preciso curar a dicotomia entre individualidade e autonomia.
Autores contemporâneos esboçam esse caminho. Judith Butler propõe uma ética da vulnerabilidade; Paul Ricoeur vê na alteridade a condição da identidade; a psicologia comunitária aponta para sujeitos inseridos em redes de pertencimento e ação. Mas, para que essas ideias produzam efeitos, é preciso antes querer esse tipo de relação.
Portanto, entre o eu e o nós, não basta equilíbrio. É preciso ver o outro, colocar o outro na escuta subjetiva do eu. Porque só quando o sujeito encontra o outro, toma noção de si – pelo susto, pela tensão que o outro causa. O outro nunca é neutro à nossa subjetividade.
O outro sempre interfere porque somos animais políticos: sujeitos de desejo, de disputa e, sim, muitas vezes, portadores de patologias. A liberdade, que poderia ser compartilhada, tornou-se também um processo de indiferença. No entanto, vejo que o individualismo no século XXI busca uma autonomia em relação ao social; porém, o outro será sempre o social, porque o social é mais real do que o próprio eu.
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