Por Adu Verbis
Desde que comecei a me interessar pela política do Oriente Médio, Israel sempre me pareceu um caso peculiar. Um país que se apresenta ao mundo como uma democracia vibrante, moderna, com instituições sólidas e direitos civis assegurados. Mas, quanto mais me aprofundei, mais difícil ficou sustentar essa imagem de uma democracia plena.
Existe no Estado de Israel uma camada quase invisível para quem observa apenas a superfície, especialmente quando a referência são os outros países da região, pois a essência religiosa do Estado é cuidadosamente trabalhada sob um verniz de democracia liberal.
Quando ouvi pela primeira vez o termo “teocracia liberal” aplicado a Israel, confesso que pareceu uma contradição. Afinal, teocracia remete a um governo dominado por líderes religiosos, enquanto liberalismo associa-se à separação entre religião e Estado, direitos civis garantidos e pluralismo. Mas a realidade pode ser mais complexa, e Israel é um exemplo perfeito dessa complexidade pluralista.
O que seria, então, uma teocracia liberal? É um regime onde elementos religiosos estruturam e fundamentam o Estado, influenciando leis, políticas e a identidade nacional, mas que ao mesmo tempo mantém instituições democráticas, liberdades civis e permite certa diversidade interna que aos olhos do mundo é uma vitrine democrática.
E ao ouvir a expressão Estado judeu, já começo a sentir o peso da contradição. Como conciliar um regime definido por uma identidade religiosa com os princípios universais de cidadania, igualdade e laicidade? Essa pergunta me acompanha sempre que observo decisões do parlamento israelense ou debates envolvendo partidos religiosos e sua teologia do Pentateuco.
Curiosamente, essa ambiguidade não é fruto do acaso, mas de uma engenharia política. Os fundadores de Israel, em sua maioria judeus europeus, eram seculares, educados em universidades ocidentais e familiarizados com o nacionalismo moderno. Mas entenderam desde cedo que a linguagem religiosa era um recurso poderoso para mobilizar pessoas, justificar reivindicações territoriais e garantir apoio internacional e formar uma comunhão em torno do tema Estado judeu.
Lembro que, ao ler pela primeira vez a Declaração de Independência de Israel, fiquei impressionado com o equilíbrio, ou talvez a tensão, entre o discurso dos direitos universais e as referências bíblicas. Era como se o texto tivesse sido cuidadosamente escrito para agradar tanto à ONU quanto aos rabinos. Essa duplicidade permanece até hoje como uma marca estrutural do Estado, alimentando não apenas suas contradições internas, mas também suas ambições geopolíticas.
Fico a imaginar como teria sido se o processo de fundação tivesse sido conduzido por judeus orientais (sefarditas e mizrahim), vindos do Marrocos, Iraque e Iêmen, com uma relação mais visceral à religião e menos influenciados pelo racionalismo e colonialismo europeu. Provavelmente, o Estado teria sido mais abertamente teocrático desde o início, talvez com uma configuração institucional mais próxima das sociedades religiosas do Oriente Médio, sem tanta preocupação em parecer uma democracia ocidental.
O que me parece mais revelador é como essa roupagem liberal, ao longo dos anos, se tornou um verdadeiro mecanismo de sobrevivência. Israel não é apenas um país para judeus europeus seculares. Hoje, convive com uma população ultraortodoxa em expansão, judeus orientais com tradições conservadoras e uma minoria árabe que, por sua simples presença e cidadania, desafia o projeto sionista.
Sem um mínimo de pluralismo formal, o risco de colapso interno seria real, afinal, ser judeu não se resume apenas à religião; mas, paradoxalmente, a religião é a base ontológica da identidade judaica. Por outro lado, sem ao menos a aparência de uma democracia, o custo diplomático para sustentar a legitimidade do Estado judeu teria hoje outras configurações e pressões internacionais ainda maiores.
Ainda assim, apesar das eleições, da Suprema Corte ativa e da "liberdade de imprensa", não posso ignorar os sinais de que o eixo central da estrutura do país continua sendo a religião. Quem pode ser cidadão, quem pode se casar com quem, quais direitos as minorias podem reivindicar – tudo isso passa, direta ou indiretamente, pelo crivo das instituições religiosas, revestido por um verniz liberal.
A tensão entre a necessidade de parecer uma democracia plena e a realidade de ser um Estado fundado em uma identidade religiosa é uma linha tênue que Israel continua a percorrer. Não vejo como o país possa se desvencilhar do caráter teocrático que é sua essência. Ao olhar mais atentamente, percebo que o verdadeiro motor que sustenta o Estado não é a democracia, mas a religião, que utiliza a linguagem dos direitos civis para formar um Estado que oscila entre a democracia e a teocracia liberal.
Essa arquitetura institucional não é apenas uma curiosidade histórica; tem efeitos concretos no cotidiano. Desde o fechamento de serviços públicos no Shabat até a definição de quem pode ser reconhecido oficialmente como judeu, a religião permeia esferas que, em outras democracias, seriam regidas por princípios civis.
Nesse ambiente, manter uma imagem democrática com garantias mínimas de pluralismo e direitos civis tornou-se uma necessidade estratégica. Sem essa “vitrine liberal”, o Estado não conseguiria absorver as tensões internas dessa paradoxal combinação de teocracia e liberalismo. A questão, portanto, não é se Israel é uma teocracia liberal ou uma democracia plena, mas sim como equilibra pragmatismo político e identidade religiosa.
Israel vive uma tensão estrutural entre o desejo de ser reconhecido como uma democracia moderna e a realidade de ser um Estado fundamentado em uma identidade religiosa. Uma democracia onde a religião é critério de cidadania e onde instituições religiosas têm poder político real. Basta olhar com atenção para perceber que o eixo central do Estado é a religião, por isso, em tese e na prática, defino Israel como uma teocracia liberal.
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