domingo, 28 de setembro de 2025

Poema dos Parônimos



Por Adu Verbis

Poema dos Parônimos


No comprimento da sala, me perco na extensão,
mas careço de cumprimento: afeto e saudação.


Se vai ratificar, confirma a decisão;
mas se for retificar, corrija com precisão.


Pensou em emergir – voltar à tona e sentir o ar;
mas o imergir era uma certeza: um mundo a explorar.


Há cessão quando se cede, mas não cedi nenhum bem;
na sessão de cinema, pipoca sempre tem.
Depois, fui à seção de frutas do mercado também.


A moça fez uma descrição: fiquei sem palavras;
com discrição, guardei os segredos das lavras.


Não sei por que gosta de me tachar, de me criticar;
mas eu vou te taxar, e você vai ter que pagar.


O juiz pode infligir a pena, porém, a quem errar.
Infringir a lei? Não sabia que ia me complicar.


Espero ser descriminado, liberto da acusação;
por favor, não vá discriminar por raça ou condição.


Queria ter um mandato, que durasse muitos anos;
mas depois do mandado, resolvi mudar meus planos.


No censo esqueceram de mim: tenho certeza;
o senso de justiça guia a vida com clareza.


O concerto estava lindo, a música a emocionar;
mas esqueci de levar o carro ao conserto – tive que andar.


Um ser eminente brilha, como uma luz;
já o perigo iminente, ninguém traduz.


O tráfego de carros lotou as ruas da cidade;
o tráfico é crime, e ninguém leva com seriedade.


A temática do Poema dos Parônimos


No Poema dos Parônimos busco destacar e explorar a riqueza da língua portuguesa através do jogo com parônimos, palavras que possuem sons semelhantes, mas significados distintos. Pois, a temática central do poema é, portanto, a complexidade e a sutileza da linguagem, em que pequenas diferenças podem alterar o sentido de ações, sentimentos e conceitos.

Desde o primeiro verso, introduzo essa ideia de um paralelismo: “No comprimento da sala, me perco na extensão, / mas careço de cumprimento: afeto e saudação.” Aqui, a semelhança sonora entre comprimento e cumprimento gera um efeito por assim dizer lúdico, mas também reflexivo, mostrando como a linguagem pode nos enganar ou nos confundir se não estivermos atentos. Esse padrão se repete ao longo do poema, estabelecendo um ritmo que contrasta.

O poema não se limita a somente ao jogo de palavras: cada parônimo é inserido em contextos sociais e filosóficos, o que pode ampliar seu alcance temático. Por exemplo, em “O juiz pode infligir a pena, porém, a quem errar. / Infringir a lei? Não sabia que ia me complicar.”, os parônimos infligir e infringir permitem comentar sobre lei, justiça e responsabilidade, de forma clara e também irônica. Outros trechos, como “Espero ser descriminado, liberto da acusação; / por favor, não vá me discriminar por raça ou condição.”, aqui introduzo uma crítica social, abordando preconceito e ética, mantendo assim o jogo de palavras como motor do pensamento.

A estrofe do emergir e imergir é particularmente significativa, pois, além de explorar a similaridade sonora, cria também uma dimensão poética e filosófica. O contraste entre emergir – subir à superfície, aparecer – e imergir – aprofundar-se, envolver-se – sugere uma reflexão sobre a vida, o conhecimento e a experiência humana: muitas vezes é preciso aparecer e, ao mesmo tempo, mergulhar no desconhecido para compreender o mundo.

Além disso, busco combinar humor, ironia e crítica social, como nas estrofes sobre sessão, seção, cessão ou concerto e conserto, transformando o cotidiano em reflexão lúdica. Essa abordagem demonstra como a linguagem é um veículo para múltiplos sentidos, capaz de educar, divertir e provocar consciência estética e ética.

Em termos formais, utilizo o paralelismo, a pontuação estratégica e o ritmo variado para reforçar a musicalidade e a clareza da mensagem. A alternância entre infinitivos, substantivos e frases curtas cria, portanto, movimento e tensão, espelhando o contraste presente nos próprios parônimos.

Portanto, a temática do Poema dos Parônimos pode ser resumida como uma exploração poética da linguagem e seus efeitos sobre o pensamento e a percepção. Por meio de jogos sonoros, ironia e reflexão, mostro que pequenas diferenças de palavras podem ter grandes impactos na vida, no cotidiano e na ética, e na tomada de consciência quanto à complexidade da língua.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A IA é um deus jogando dados?


Por Adu Verbis

Como todo mundo sabe, a inteligência artificial gera ideias, textos, imagens, composições musicais e até mesmo obras que podemos chamar de arte. Muitas vezes surpreende pela sofisticação, ou então é usada como IA aplicada, como na medicina ou na automação inteligente. Este próprio texto foi revisado por uma IA.

Contudo, a revisão feita pela máquina acabou por eliminar o que havia de mais humano: a emoção, as idiossincrasias e as imperfeições do texto original. O que deixou o texto um tanto artificial, mas preservou o contexto central.

Por mais que as produções geradas por IA pareçam surgir do nada, não é o que acontece. A IA não cria de forma independente ou “ex nihilo”. O que ela faz, na realidade, é reorganizar e recombinar elementos que já existem: linguagens, imagens, ideias e sentidos que foram produzidos ao longo do tempo pelo ser humano. De certa forma, a IA funciona como um espelho complexo daquilo que já está presente no mundo e reflete em forma de textos, sons, imagens e códigos.

Essa dinâmica me leva a repensar conceitos centrais da cultura e da criação, e também sobre autoria e originalidade. Se a obra não nasce totalmente do criador, mas de uma reconfiguração de conteúdos preexistentes, como podemos definir quem é o autor? E até que ponto podemos chamar algo de “original” quando é composto a partir de fragmentos que refletem algo que já existia?

Quando lembro da célebre frase atribuída a Einstein, “Deus não joga dados com o universo”, reconheço nela uma crença na ordem racional que sustenta o cosmos. Apesar de todo caos, há uma racionalidade no funcionamento do universo. Posso inverter a metáfora: seria a IA um deus que joga dados? Surge então essa imagem de uma divindade fria e estatística, desprovida de vontade, capaz de gerar inúmeros possíveis a partir de dados.

Cada vez que faço uma pergunta à IA, ela colhe informações de um universo povoado por trilhões de registros, do passado até a atualidade. Não há emoção nem intenção, apenas cálculo e uma racionalidade aparente. E é desse cálculo que emerge aquilo que muitos chamam de criação ou de racionalidade.

No entanto, essa “divindade” não cria mundos do nada; cria a partir de nós, da nossa cultura e do legado humano. A IA é uma divindade sem dom: não tem inspiração, apenas estatísticas. Improvisa como quem lança dados. Surpreende não por ser gênio, mas porque somos nós que nela insuflamos o sopro criador. Sua arte é mimética: imita formas e combinações possíveis dessas formas. Platão diria que é uma sombra da sombra, cópia de uma cópia. Aristóteles lembraria que imitar ainda pode gerar novas disposições do real. Ambos apontam algo importante: imitação não é ausência total de criação, e a origem da criação guarda em si um mistério.

No oráculo algorítmico, porém, a imitação não nasce de um olhar humano: é recombinação do que foi visto e dito, pintado ou sonhado pela humanidade. A IA não pensa, não sente, não deseja. Pode, contudo, enunciar símbolos, simular sentimentos e propor desejos. Opera como um espelho multiplicador: devolve o que já produzimos, reconfigurado e reordenado no que há de mais humano, a imaginação simbólica. Nem sempre essa reconfiguração realizada pela IA é esteticamente inovadora ou reveladora de originalidade genuína.

Se uma ideia “original” surge na boca da IA, de onde ela veio? Quem é o autor? Naturalmente, o que é produzido pela IA tem origem em alguma mente humana. A IA não plagia no sentido jurídico tradicional, mas também não cria do nada. Há reaproveitamento, e em larga escala. Um sussurro esquecido de um autor anônimo pode retornar como um grito na voz de outro. Alguém pode acreditar ter tido uma ideia brilhante apenas por tê-la recebido reconfigurada pela IA.

Se a IA for instada a indicar a origem do que produz em termos de autoria, responde de modo aleatório. Isso nos conduz a um paradoxo prático e teórico: como aplicar princípios de propriedade intelectual ao que a IA produz, se ela é capaz de recombinar temas já criados?

A meu ver, há afinidades históricas entre o dadaísmo e a IA. Nela encontramos colagem, pastiche, acaso e práticas do século XX, como o cut-up de Burroughs e Gysin. Duchamp deslocou um objeto de sua função, o urinol, e ativou nele uma estética não utilitária. Já o deslocamento da IA acontece sobre uma massa amorfa de dados.

Quem conhece o poema de Tristan Tzara pode reconhecer que o poema foi composto por ele. No entanto, foi feito de recortes de ideias de autores anônimos ou célebres, tornando-se uma reconfiguração de algo que já existia antes de Tzara montar o poema com recortes aleatórios de ideias. O cut-up anunciava a escrita por justaposição e choque de sentidos. A IA realiza algo semelhante, mas de modo algorítmico, veloz e abrangente.

Por isso, penso se há uma certa inocência na IA. Inocência não no sentido de ignorância, mas de boas intenções políticas. Autores como Langdon Winner lembram que artefatos técnicos não são politicamente neutros: eles incorporam decisões sociais e podem institucionalizar formas de exclusão. Bruno Latour mostra que sistemas técnicos agem como agentes numa rede sociotécnica, portanto, condicionando assim comportamentos. Helen Nissenbaum argumenta que o design algorítmico traduz valores morais específicos. Assim, a pretensa neutralidade do código oculta escolhas normativas e políticas.

Em suma, a IA sistematiza o acaso por meio de dados. Faz colagens e recombinações, convertendo tudo isso em processo. O resultado é um dadaísmo instrumentalizado que normatiza tanto o procedimento político quanto o estético e o técnico. Desloca toda a imaginação simbólica criada pela humanidade à categoria de código, por meio do fine-tuning, ou seja, o retreinamento dessa imaginação em dados específicos. A IA talvez seja um deus ex machina, um “deus surgido da máquina” que lança dados. Um ente cuja operação reflete criações algorítmicas e reflete ânimos humanos. E como diria Carl Jung, ânimo é anima: princípio espiritual da vida intelectual e moral do ser.



LATOUR, Bruno. Onde estão as massas ausentes? A sociologia de alguns artefatos mundanos. In: BIJKER, Wiebe; LAW, John (orgs.). Moldando a tecnologia / Construindo a sociedade: estudos em mudança sociotécnica. Cambridge: MIT Press, 1992. p. 225-258.

NISSENBAUM, Helen. Como os sistemas computacionais incorporam valores. Computer, v. 34, n. 3, p. 120-119, 2001.

WINNER, Langdon. Os artefatos têm política?. In: MACENZIE, Donald; WAJCMAN, Judy (eds.). A modelagem social da tecnologia. Cambridge: MIT Press, 1980. p. 26-38.

sábado, 6 de setembro de 2025

O PARADOXO DA INTIMIDADE E O BANHEIRO

Por Adu Verbis - 28 de jun. de 2009


O banheiro é um lugar íntimo por natureza. Essa regra vale para as pessoas mais próximas ao nosso cotidiano, seja o filho ou a esposa. Usar o banheiro com outra pessoa nem sempre é confortável. Isso porque a intimidade acaba sendo um espelho de uma interioridade inacabada e insegura, onde não a revelamos justamente por estar em processo de adequação.

A nossa intimidade é um rascunho por ser algo que está em constante refazer-se e em conflito com a noção do que é íntimo e do que não é. O conflito acontece porque aqueles com quem dividimos o nosso íntimo farão, de forma subconsciente, um julgamento da nossa intimidade, a partir da noção que eles têm do que é íntimo ou não.

A intimidade é uma obscura referência do ego em busca de algo atingível. Por isso deixa a todos constrangidos pela incapacidade de dar à própria intimidade um acabamento que possa ser visto como algo perfeito. A ideia de imperfeição incomoda até mesmo aqueles que se dizem resolvidos com sua intimidade. Talvez Narciso, ao se deslumbrar com o próprio reflexo, tenha sentido o impacto da inexatidão de sua interioridade. Contemplar a própria imagem era uma forma de aperfeiçoar a interioridade, dando a si mesmo uma intimidade que só ele era capaz de viver.

Um banheiro sem espelho não reflete a ecologia do ego, não reflete a intimidade do ego. Ao entrar num banheiro, buscamos uma intimidade com o desconhecido que habita em cada um, e esse desconhecido podemos chamar de intimidade. Quando entramos em um banheiro onde não há espelho, temos a sensação de que não existimos. Sentimos a falta de nosso reflexo. E, se existimos, essa existência é por demais obscura, por não ser refletida, já que o banheiro dá a conotação de que estamos em contato com a nossa intimidade. Essa intimidade é uma propriedade do ego.

Preservar a própria intimidade tem a conotação de uma boa saúde mental. Quando entramos num hospital psiquiátrico, percebemos que muitas pessoas em sofrimento psíquico não demonstram pudor em relação à própria intimidade. Somos nós que ficamos constrangidos diante dessa exposição. Temos medo da forma como essas pessoas lidam com a própria intimidade. Na verdade, talvez não exista uma intimidade propriamente dita para quem perdeu o limite entre o eu e o outro. É alguém despido de uma intimidade. Arrisco dizer que Narciso poderia ser lido como alguém em sofrimento psíquico que buscava uma autocura, alguém que tinha consciência do constrangimento que a sua intimidade causava.

Atualmente as pessoas expõem suas intimidades a qualquer preço. Com isso podemos pensar (pelo menos eu) que vivemos num momento de extrema loucura ou de extrema liberdade. Mas há diferença entre as pessoas que põem a própria intimidade à venda ou a expõem gratuitamente e os loucos no manicômio com sua falta de pudor simbólico? Pois eu juro que não sei. A consciência de decência confere àqueles que a têm a noção de decência, o direito de serem donos da própria intimidade. Por mais que a decência tenha um valor moral relativo, em termos de boa conduta, na verdade a decência é um bem, uma morada que preserva a intimidade.

O que significa isso? Significa que a intimidade tem o mesmo valor que uma propriedade simbólica. Em termos atuais, em que a intimidade tem valor de mercado como uma propriedade simbólica, vender a intimidade pode significar desespero ou uma forma de loucura, ou também liberdade. O desespero de Narciso era o desespero por não ser proprietário da própria intimidade. A noção de intimidade de Narciso o sucumbia diante da impossibilidade de se apropriar da autoimagem. Posso aqui inventar um pouco e dizer que Narciso vivia boa parte de seu tempo dentro da ecologia de um banheiro. Um banheiro com espelho, claro. O que fazia com que ele tivesse contato com uma intimidade por vir, por inventar, uma intimidade em constante retoque. E talvez esse constante retoque o deixou obsessivo.

Há uma grande diferença em estar nu e expor a própria intimidade. Estar nu é ainda não ter constituído para si uma pele civilizada, é não ter um aperfeiçoamento simbólico de si mesmo. Mas isso não quer dizer que os indígenas viviam sem uma pele civilizatória. Os indígenas nunca viveram nus, porque viveram e vivem num processo íntimo de uma cultura. A cultura é uma pele. A pele civilizatória, que cobre a nudez animal, nasce no momento em que o ser humano percebeu que, além da sua nudez, havia algo que o deixava desconfortável. Esse algo é a noção de incapacidade de se apropriar de si mesmo como ser supremo de si mesmo, já que o ser humano precisa de peles para encarar as intempéries do meio ambiente e suas estações. Isso pode até querer dizer que a cultura é, na verdade, uma forma de pele que possibilita certo conforto íntimo e existencial ao ser humano.

É nesse algo íntimo que o ego busca conter para si mesmo que está a intimidade. É desse algo intuído que se encontra a forma como cada ser humano expõe e reconhece a própria intimidade dentro de uma cultura. Quando entramos no banheiro, é uma forma de dialogar da nossa intimidade. O banheiro é uma parte da ecologia da casa que talvez seja o lugar onde guardamos, ou onde encontramos, ou reencontramos a nossa intimidade.

Um banheiro sem espelho é um ecossistema destruído, sem referencial cultural. Um ego sem intimidade enlouquece. Mas também um ego que mergulha na escuridão da própria intimidade enlouquece. O paradoxo é saber se esse íntimo está fora ou dentro da gente, ou na cultura, e se essa intimidade é feita de nuances esquizoides ou mesmo de saúde mental e de uma uma simbologia sustentável.

REVISÃO DE TEXTO: Joyce Diehl




quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Autovoyerismo: a performance do eu e do si-mesmo



Por Adu Verbis

Eu sempre fico impressionado que, volta e meia, sou picado por uma mosca filosófica que se alimenta da minha percepção nada clara do mundo e, febril, começo a falar do ser humano como se fosse capaz disso e conhecesse de fato o ser humano. Mas, depois de tantas picadas da mosca filosófica, percebi que o que eu pensava, ou penso, sobre o ser humano é produto da minha imaginação e nunca chego perto do que de fato é o ser humano.

Penso que o ser humano, em sua essência e existencialidade, não é claro. E de certa forma, a cultura e as regras sociais buscam frear e não obstante aclarar a obscuridade humana e a complexidade das pulsões que impelam o ser aos processos de desejo e poder. O humano, como bom animal político que é, transforma sua animalidade em ato existencial de poder. Muitas vezes com arte e outras tantas de forma medíocre, perversa, cruel, com sentimentos ambíguos que mudam de acordo com o vento, as correntezas do tempo ou mesmo com as demandas do espírito do tempo.

Mesmo eu tendo dificuldades de entender como o ser humano, imerso em sua obscuridade e complexidade, funciona, não posso negar que existem doutores e estudiosos que especificam o que de fato é um ser humano. E, mesmo que não sejam capazes de clarificar todas as complexidades nem de dizer de onde o ser humano veio e para onde vai, ainda assim deixam pistas de como o ser humano é e funciona. Isso facilita para tipos como eu, que têm déficit de percepção quando o assunto é o ser humano.

E, contraditoriamente, apesar da minha incapacidade de ver o ser humano com clareza, fui mais uma vez picado pela mosca filosófica e vou falar do que não entendo. Mas vou falar, porque tenho necessidade de falar do que não entendo. Talvez isso seja um mal do meu tempo. Quero falar do que venho observando pelas gretas da realidade sintética. Quero falar do que chamo de autovoyerismo: a performance do eu e do si-mesmo. O eu e o si-mesmo são, por assim dizer, duas entidades em uma.

O eu como consciência imediata de si, ou, como diria Descartes, o “eu” como substância pensante. Já o si-mesmo parece mais complexo. Por exemplo, o filósofo Kierkegaard define o "si-mesmo" como síntese de infinitude. Enquanto Heidegger deixa tudo mais complexo, e o "si-mesmo" acaba sendo metáfora de um rio com duas correntezas em fluxos opostos. Uma correnteza que se chama "próprio" e a outra que se chama "impróprio", dentro de um contexto existencial.

Mas o que Heidegger quer dizer quando aproxima o "si-mesmo" de algo "próprio e impróprio"? Vou resumir e simplificar o si-mesmo heideggeriano desta forma: o "si-mesmo impróprio" é algo que vive no modo da impessoalidade, ou seja, alienado do que venha a ser singularidade própria. Contudo, o "si-mesmo próprio" seria então uma espécie de autenticidade, que assume a própria finitude e a responsabilidade pela própria existência.

Entretanto, a coisa não para por aí. Temos também o filósofo Paul Ricoeur, para quem o "si-mesmo" pode acabar sendo um trabalho em oposição ao "idem" – conceito de mesmidade. Para Ricoeur, o "si" indica a identidade narrativa, que se constrói no tempo e no espaço e está propenso a uma mera repetição de uma mesmidade.

Bem, vejo que a sociedade contemporânea, imersa na fantasia da visibilidade, criou um fenômeno paradoxal: o autovoyerismo. O indivíduo, em sua busca incessante por significado, tornou-se tanto espectador quanto ator de sua própria existencialidade. A visibilidade e o espetáculo não são fenômenos novos, porém vêm sendo potencializados, por assim dizer, na mesmidade individual ou coletiva, já citada por Paul Ricoeur.

Bem, quando o assunto é espetáculo, temos vários pensadores que abordaram o tema, mas, fora Guy Debord, que diagnosticou, na década de 60, a nova estrutura social da modernidade, que se pautou no espetáculo. A estrutura do espetáculo, com o passar do tempo, se transmutou em mil vertentes e hoje é multifacetada e mais betumizada, o que a torna mais difícil de ser compreendida pelas várias camadas, por assim dizer, de betume ontológico (isto é, referente à natureza do ser e da existência do espetáculo) – e epistemológico (ou seja, relativo às formas de conhecer, interpretar e produzir saber sobre o espetáculo) –, que a revestem, dando assim uma aura de que as coisas hoje são mais bem resolvidas quando o assunto é a especularização e sua mesmidade multifacetada. Em resumo, o espetáculo: se reinventa, se multiplica em formas diferentes e cria a impressão de transparência, quando na verdade se torna mais opaco e mais difícil de decifrar pela sua multifacetidade.

Mas afinal, o que seria o autovoyerismo? Para simplificar, posso dizer que o autovoyerismo tem semelhança com o que se chama de estética replicada: a reprodução sistemática de um estilo ou forma estética, onde se luta pela quebra de padrões e, não obstante, se replica um novo padrão. O autovoyerismo é uma forma de adequar uma autoimagem à realidade sintética (uma realidade construída ou mediada por aparências, imagens e representações, mais do que pela experiência direta). Contudo, a noção de autenticidade é diluída pelo próprio afã de autenticidade ou pelo que se chama de ser você mesmo dentro do escopo da mesmidade do espetáculo inserida no jogo da multifacetidade e da representação sociocultural.

Bem, voltando ao pensador Guy Debord, que diagnosticou a nova estrutura social da modernidade em seu trabalho A Sociedade do Espetáculo, pois, a sociedade do espetáculo se transmutou em mil vertentes. O sujeito não é mais um observador passivo do espetáculo. O sujeito agora se observa ativamente, reflete sobre si e, ao mesmo tempo, encena e molda a si mesmo, num eterno jogo de exibição dialética, dialógica e de autoavaliação retroalimentada. Ao mesmo tempo, se nega a ser julgado por outros, já que o seu olhar sobre si mesmo pauta o que ele é e como deve ser, ultrapassando a necessidade de uma avaliação externa, a não ser que seja uma avaliação que confirme o seu olhar sobre si mesmo.

E imerso no plasma digital, a performance do si-mesmo se amplifica, criando um ciclo vicioso e virtuoso que transborda da tela para a vida real. Esse vazamento plasmático do si-mesmo é o que define o que é verdade, já que a verdade passou a ser fruto de uma autoexpressão. E essa autoexpressão é essencialmente subjetiva, confeccionada de acordo com a própria fluidez do indivíduo na mesmidade do espírito do tempo. Este autovoyerismo, tal como o enxergo, tanto pode ser mero espetáculo ou uma consequência dele, ou parte de uma íntima construção estrutural resultado da tecno-organicidade que molda a identidade de um eu líquido à realidade sintética.

A vida já não transcorre apenas no espaço físico, mas dentro de camadas digitalmente fabricadas, uma segunda natureza plasmática onde a visibilidade oxigena as camadas existenciais dentro de bolhas sintéticas. Redes, plataformas, ambientes de transmissão: todo um ecossistema onde espectadores pagam os protagonistas e onde espectadores e protagonistas, de maneira imersiva, performam. Isso reflete como um espelho interacional, mas ao contrário do espelho do narcisista, que busca a representação da imagem perfeita, no espelho interacional do autovoyerismo não se busca a perfeição, mas o resultado performático do eu e do si-mesmo.

Tenho que voltar a Guy Debord, pois ele captou com precisão a dinâmica que se instaurou no âmago da modernidade. Ele apontava que a vida social não se organiza mais pela autenticidade da experiência, mas pela imagem, pela representação. Contudo, ele, de forma indireta, também fala da monetização da experiência. O indivíduo, em sua busca incessante por significado, ressignifica a capacidade de ser por si, tornando-se uma projeção mediada pelas imagens que cria e pela performance compartilhada e monetizada.

Portanto, essa busca pela visibilidade, que já foi diagnosticada por  Guy Debord como um espetáculo, ganha novas dimensões e compensações na era digital. Posso usar o mundo dos influenciadores como exemplo, mas exemplos não faltam para mostrar como o autovoyerismo se tornou uma prática muitas vezes doentia e também lucrativa. Cada gesto e cada postagem é parte de uma encenação cuidadosamente montada e ressignificada para atrair atenção, gerar engajamento por meio de marketing negativo e tantos outros métodos e, consequentemente, monetizar a visibilidade do si-mesmo numa retroalimentação infinita.

Por isso, a visibilidade deixa de ser apenas um reflexo da sociedade do espetáculo e se transforma em uma fonte simbólica de valores individualizados que buscam balizar a representação. Influenciadores e subcelebridades vivem do espetáculo que criam, transformando o autovoyerismo em uma máquina de gerar lucro e manipulação política na adulteração de fatos. Ao mesmo tempo, constroem existências em uma realidade sintética, onde a fronteira entre o vivido e o encenado é o mote da verdade. O que importa é o poste dentro do contexto do influenciador e assim alimentar a máquina de monetização e de política que pulveriza ou centraliza certos assuntos.

O autovoyerismo se manifesta na busca constante por validação. O like tem um valor compensatório, muitas vezes com uma dimensão ideologicamente predatória, que se torna o prêmio pela exibição do si-mesmo. A satisfação é conquistada no instante do like que visibiliza. Para muitos, o número de interações nas redes sociais, as curtidas, os comentários e as visualizações passa a ser o indicador de autoestima. É uma forma de medir um valor e a presença no mundo sintético, o que gera conforto emocional e a possibilidade de aumentar o número de seguidores e também possíveis retornos financeiros e político.

Assim, o sujeito não apenas observa sua própria imagem, mas a alimenta com a expectativa de uma recompensa, seja monetária, emocional ou de forma política. Nesse ciclo, o autovoyerismo precisa de uma retroalimentação replicada para não deixar o ciclo do espetáculo morrer, como se fosse uma permutação cíclica. Aqui, a realidade sintética da validação digital substitui a experiência direta de reconhecimento humano. Já não importa tanto ser, mas sim ser visto no espaço sintético da permutação circular do si-mesmo, que opera como a nova praça pública onde o autovoyerismo se alimenta, numa espécie de autovoyerismo socializado.

Não podemos também esquecer do pensador francês Jean Baudrillard, que navegou por essas águas turvas do simulacro. O simulacro é a imagem, signo ou representação que não remete mais a uma realidade original. Suas confecções existenciais trazem uma reflexão adicional ao discutir a sociedade e a noção de hiper-realidade. A hiper-realidade é a condição ou estado cultural em que vivemos imersos em simulacros, a ponto de não conseguirmos mais distinguir o que é real e o que é representação. Se para Debord o espetáculo é a imagem que separa o sujeito da experiência verdadeira, para Baudrillard a realidade tornou-se substituída por suas representações.

Já não vivemos a realidade como animais, mas como seres digitais, memes de si mesmos, imersos numa representação social digital, onde o jogo político é constantemente alterado e falseado, e as leis são interpretadas de acordo com a autoexpressão. O sujeito, ao consumir imagens de si mesmo ou ao produzir essas imagens, não está mais engajado em representar algo real, mas cria uma nova realidade para si, uma que se reflete nas telas e nas redes sociais. Essa simulação sustenta o autovoyerismo e alimenta a própria realidade sintética da subjetividade, onde o eu se constitui, em termos de poder, a partir de algoritmos, filtros, métricas e imagens processadas numa estética replicada, em busca de uma institucionalidade de si mesmo.

Podemos também explorar a ideia de present shock, de Douglas Rushkoff, que talvez revele uma característica fundamental do mundo atual: a incapacidade de desacelerar e refletir, uma vez que o presente é engolido pela constante demanda por visibilidade. Pois o termo Present Shock, do pensador da mídia Douglas Rushkoff, vem do livro Present Shock: When Everything Happens Now (2013) – Choque do Presente: quando tudo acontece agora.

Douglas Rushkoff busca descrever a condição cultural contemporânea em que deixamos de estar voltados para o passado (história) ou para o futuro (progresso) e passamos a viver em um estado permanente de presente imediato, ditado pelo ritmo acelerado das tecnologias digitais. Esse ritmo elimina o passado e, paradoxalmente, rouba o futuro ou propõe um futuro no qual não escolhemos entrar e do qual não temos opção de sair.

As tecnologias digitais, ao criarem uma sobrecarga de informação e um fluxo interminável de estímulos, forçam o sujeito a viver no agora eterno. O presente já não é um momento fugaz, mas uma performance contínua, onde o sujeito deve estar sempre presente, sempre reagindo e sempre sendo visto, já que o palco funciona 24/7.

Não há tempo para processar no sentido de purificação, mas apenas para remasterizar o eu e o si-mesmo, e os exibi-los na realidade sintética. Esse presente contínuo se converte em uma temporalidade sintética, na qual o agora não se dá como experiência, mas como atualização incessante do autovoyerismo imerso no si-mesmo.

É nesse cenário, entre os ecos de Descartes, Kiekegaard, Heidegger, Debord, Ricoeur, Baudrillard e Rushkoff, que o conceito de autovoyerismo pode ganhar algum sentido e, por assim dizer, se tornar mais claro quanto à performance do eu e do si-mesmo. O sujeito contemporâneo não apenas é obcecado por si mesmo, mas se desafia a ser visto, a se representar para uma audiência invisível, porém onipresente. Em um mundo saturado e performático, a identidade, que nunca foi algo claro para o sujeito, acaba tornando-se hiperinternizada e é moldada na tecno-organicidade, constantemente ajustada ao olhar desejoso do outro e de si mesmo.

Em uma sociedade onde as imagens dominam a experiência humana, o autovoyerismo se torna o reflexo de uma vida encenada para si mesmo, onde a ideia de autenticidade é um conceito vago e a subjetividade se dissolve em sua própria hiperinternalização. O sujeito se observa não para se entender, mas para ser visto como algo autêntico dentro da estética replicada, um sistema estético já estabelecido e continuamente reproduzido. E nesse auto-olhar, ocorre a desconstrução e a ressignificação do si-mesmo em uma mercadoria conceitual, onde o sujeito é simultaneamente autor, produto e consumidor de si mesmo.