sexta-feira, 23 de maio de 2025

O que há entre os performances dos 60 e 80 com os atuais influenciadores digitais?


Por Adu Verbis

Outro dia, fui surpreendido por uma ideia que, num primeiro momento, achei um devaneio. Mas ela acabou grudando na minha cabeça. Comparei os artistas performáticos dos anos 60 e 80 com os atuais influenciadores digitais. Nos anos 80, eu acreditava que os performances das décadas de 60 a 80 habitavam um universo distante da realidade, ou seja, ocupavam palcos de vanguarda e salões experimentais, e nem sempre se comunicavam com a realidade, mas sim com grupos fechados; ou como se diz hoje, com bolha.

Hoje, as redes sociais são palcos, e a internet, um mundo paralelo. Nesse mundo paralelo encontra-se de tudo, mas aqui vou me concentrar nas dançinhas coreografadas, nos vlogs confessionais e em outras tantas atitudes cuidadosamente estudadas, lançadas nos palcos digitais. Os performances buscavam arte e contestação, enquanto que os influênciadores, muitas vezes não retratam fatos ou verdades, mas sim uma estética e uma visão subjetiva de época.

Absorvido pelo que se chama de conteúdo nas redes sociais, e pela arte da vanguarda performática dos anos 60 a 80, perguntei a mim mesmo: o que realmente diferencia os performances com sua arte nas décadas passadas dos influenciadores digitais com seus conteúdos líquidos?

A performance foi uma modalidade artística muito comum entre os anos 60 e 80. Mesclava linguagens, tendo o corpo como veículo e o meio como a mensagem. Já o influenciador é alguém que, por meio de sua presença pública, especialmente nas redes sociais, que são o meio, exerce influência sobre comportamentos, opiniões, decisões de consumo, estilos e outros motes.

Tanto o performance quanto o influenciador se manifestam por meio do corpo e de ideias, transformando o meio em mensagem. Se antes Yoko Ono sentava-se no palco e oferecia sua roupa à tesoura do outro, hoje há jovens que se despem – emocionalmente ou literalmente – diante da câmera, esperando que os comentários digam algo sobre quem são. Não se trata apenas de um paralelo estético, mas de uma linhagem simbólica. O corpo continua sendo o centro: corpo-expressão, corpo-ritual, corpo-mensagem.

O grupo Fluxus, um movimento artístico e interdisciplinar ativo nas décadas de 60 a 80, que se proclamava como antiarte, já dizia: “a arte é vida”. Hoje, os influenciadores parecem dizer o inverso, com o mesmo impacto: “a vida é conteúdo”. A diferença está menos na intenção e mais no contexto. Enquanto os performáticos buscavam romper com as instituições da arte e questionar seus limites, os influenciadores operam dentro de plataformas altamente capitalizadas, onde cada gesto pode ser convertido em métrica e monetizado.

O fio da meada entre performances e influenciadores está na mensagem. A banalidade ou a contestação podem ser convertidas em expressão de liberdade, e a mentira, em fato. O público é parte essencial do processo, tanto dos performances quanto dos influenciadores. Seja na sala escura de um espaço alternativo ou numa live de maquiagem, num quarto iluminado por LED. A vontade de se mostrar para o outro e a busca por dizer alguma coisa e ser ouvido são a base comum de ambos.

E nessa vontade de se manifestar, seja dos performances nos anos 60 e 80, seja dos influenciadores hoje, há também a química. Literalmente. A dopamina, neurotransmissor do desejo, do prazer e da antecipação da recompensa, desempenha um papel silencioso nas manifestações dos performances em suas contestações estéticas, assim como na arquitetura da exposição constante dos influenciadores. Cada curtida, cada comentário, cada nova notificação atua como um pequeno disparo de dopamina, reforçando o ciclo entre visibilidade e validação.

Mas, se toda performance tem seu público, todo influenciador tem seu preço. Nos anos 60 e 70, o preço era a incompreensão, o escândalo, às vezes a violência. Marina Abramović se colocava em risco real ao permitir que o público fizesse o que quisesse com seu corpo. O artista pagava com dor, anonimato, marginalidade.

O influenciador de hoje, embora navegue em mares aparentemente mais suaves, paga com outra moeda: constância, relevância, autoexposição contínua. O algoritmo exige sacrifícios diários e, em troca, libera doses intermitentes de dopamina que viciam e perpetuam o ciclo performático dos aplausos e dos likes.

Talvez o espetáculo não tenha mais palco fixo. Ele acontece em qualquer lugar onde houver uma câmera, um feed, uma audiência. E cada um que participa, seja artista ou influenciador, paga o preço por tornar visível aquilo que normalmente se guardaria. Isso é performático, e tem suas recompensas e punições.

Não é exagero ver, em muitos desses influenciadores contemporâneos, a herança inconsciente dos performáticos do passado. Se George Maciunas, artista, arquiteto e designer lituano-americano (1931–1978), fundador do movimento Fluxus, quis dissolver as fronteiras entre arte e vida, talvez hoje estejamos testemunhando uma dissolução ainda mais radical: a entre vida, transmissão e recompensa.

Não afirmo que um TikTok seja uma obra de arte, mas talvez o impulso dos performances e dos influenciadores seja o mesmo: provocar, revelar, existir. O palco muda, o público se multiplica, mas a performance, essa busca por sentido diante do olhar do outro, continua atravessando os tempos.

O que há entre os performances e os influenciadores é uma linha tênue que separa um tempo do outro. Essa linha é feita de desejo, risco, espetáculo e química. Uma linha que conecta décadas distintas, mas pulsa com a mesma urgência de ser visto, de afetar e de permanecer — mesmo que seja por alguns segundos numa galeria ou num feed alheio.

Em resumo, fazer um vídeo de dancinha pode até não ser arte, mas é performance. E dar um like num vídeo é como aplaudir uma performance. Nas décadas de 60 ou 80, os artistas eram glorificados pelos aplausos e pelas portas abertas, assim como os influenciadores são glorificados pelos likes e pelo retorno econômico.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

As Castas na Era Digital



Por Adu Verbis

Logo no início dos anos 2000, quando a internet começava a se popularizar de forma mais ampla, eu visualizava um mundo utópico quando o assunto era liberdade e redes sociais. A internet me parecia, de fato, uma forma de amplificação da democracia: todos com voz, todos com espaço, e a liberdade que ela poderia oferecer não destruiria as instituições que sustentavam (e ainda sustentam) a democracia. Afinal, a democracia só se mantém por meio das instituições que trabalham pela sua preservação.

Porém, a democracia não é perfeita. Ela é um rito de acesso à ideia de que todos são iguais perante a lei. Mas a lei é um código frio, e nem sempre quem a administra é ético o suficiente para garantir que todos sejam iguais também perante os semelhantes – e não apenas teoricamente. Para que a democracia pudesse se tornar perfeita, seria preciso uma revolução para decapitar as cabeças das autarquias, acabar com reinados e extinguir as religiões – uma instituição que corrobora o sistema de castas – e começar tudo do zero. Claro que estou sendo utópico e dizendo besteiras. Pois bem, deixa eu ser sério, porque o assunto exige seriedade.

A partir de 2010, com o crescimento massivo das redes sociais, fui percebendo que o mundo digital reproduz modelos de castas, com nova estética e lógica algorítmica, mas com hierarquias tão antigas quanto as castas da Índia ou as divisões sociais da Europa antes das revoluções modernas. E, nos primeiros anos dessa transição (entre 2005 e 2012), quando a internet como a conhecemos hoje e as redes sociais estavam em sua fase inicial, eu gostava de estudar o sistema de castas, porque essa ideia também se sustenta graças a instituições que trabalham para mantê-la, e a religião é uma dessas instituições. Além disso, a natureza humana tem uma forte tendência a estratificar processos de diferenciação e a criar camadas e subcamadas de valores.

Anos depois, ao reler autores como Isabel Wilkerson, em Caste: The Origins of Our Discontents (publicado em 2020), reconheci o padrão. Wilkerson descreve a casta como uma estrutura invisível que organiza a sociedade com base em pureza, função e hereditariedade. Então percebi que não é necessário um rei nem um templo: basta a crença coletiva de que certos grupos "pertencem" ao topo e outros, à base. Nas redes sociais, isso se traduz em quem tem visibilidade, quem dita tendências, quem fala e é ouvido – e quem não é.

Steve Baldwin e Bill Lessard, já em 2000, apontavam, em NetSlaves, o surgimento de castas digitais no mercado de trabalho da internet. Havia os robber barons – magnatas digitais – e os mole people, trabalhadores invisíveis que mantinham tudo funcionando sem nunca aparecer. A lógica permanece: criadores de conteúdo periféricos, moderadores mal pagos, programadores terceirizados, todos operam nos bastidores, enquanto a elite digital brilha.

Em 2007, Danah Boyd, em sua pesquisa sobre adolescentes no MySpace e Facebook, mostrou como a segregação digital reflete divisões raciais e econômicas. Isso em 2007 – e já estamos em 2025, e essa dinâmica segregacional se amplificou. Hoje temos tribunais segregacionistas, fascistas, nazistas e outros tantos “ismos”. Todo mundo sabe que o espaço digital não é neutro: os códigos, interfaces e algoritmos são moldados por valores sociais, morais e econômicos. Como nas castas, o pertencimento é marcado desde o início, e a mobilidade é limitada.

É fácil ver isso no cotidiano: uma adolescente negra que começa um canal de beleza pode ter vídeos com qualidade, carisma e consistência, mas, se não for impulsionada por algoritmos que favorecem padrões eurocêntricos de beleza, permanecerá invisível. Enquanto isso, influenciadores com aparência considerada mais “aceitável” pela lógica hegemônica são premiados com alcance e patrocínios desde os primeiros vídeos. Podemos ver o resultado disso no investimento que os barões dos jogos e apostas (bets) fazem para cooptar influenciadores.

Contudo, na complexa geografia digital, a Deep Web e, mais especificamente, a Dark Web, funcionam como territórios onde a liberdade encontra limites e paradoxos. Esses espaços são celebrados por oferecerem anonimato e resistência à vigilância, abrigando desde ativistas e dissidentes até mercados ilegais e redes de crime organizado, como todo mundo sabe. 

No entanto, vejo que, nessa aparente liberdade, está imersa uma forma de estratificação: o acesso ao conhecimento técnico, o capital simbólico dentro dessas redes ocultas e a participação em seus sistemas próprios de poder criam castas digitais tão rígidas e excludentes quanto aquelas visíveis nas redes sociais tradicionais ou na web legalizada. 

Além disso, a dinâmica da segurança nesses ambientes, baseada no complexo processo de anonimato, exige constante vigilância e controle, tornando o equilíbrio entre proteção e exposição uma questão delicada e instável. Assim, mesmo onde a promessa de liberdade é mais intensa, a realidade revela um funcionamento paradoxal, onde a hierarquia e a segregação seguem marcando quem pode agir, influenciar e sobreviver nesse submundo digital.

Vale lembrar que foram os ideólogos da internet livre, muitos deles alinhados à vertente dos anarquistas digitais, como John Perry Barlow, Richard Stallman e Julian Assange, assim como outros pensadores como Tim Berners-Lee, Cory Doctorow e Mitchell Baker, que idealizaram a ideia de uma internet livre e aberta. Portando, é bom ressaltar, que a Dark Web, por sua vez, é uma consequência da complexa natureza humana, um território onde coexistem valores que reprimem e valores que versam liberdade, refletindo as contradições inerentes ao próprio ser humano e suas relações de poder, e por assim dizer, e brincando com a maleabilidade das palavras e da língua: poder legalizado e poder ilegal. Poder autorizado e poder não autorizado. 

Bem, voltando a web legalizada, Thenmozhi Soundararajan, ativista e autora de The Trauma of Caste (2022), alerta para a continuidade do sistema de castas no digital. Segundo ela, os dalits – grupo social da Índia historicamente marginalizado – enfrentam exclusões semelhantes na rede: discursos apagados, algoritmos que não os promovem, denúncias ignoradas. A casta, mesmo fora da geografia da Índia, continua como um padrão de exclusão e silenciamento. Algo parecido ocorre no Brasil com as populações indígenas e quilombolas, que muitas vezes precisam recorrer a coletivos ou ONGs para terem suas vozes ouvidas, já que seus perfis não têm o mesmo “valor de atenção” para as plataformas.

Já Manuel Castells, em A Sociedade em Rede (1996, edição brasileira de 1999), fala de uma “sociedade em rede” onde o poder flui por meio do acesso à informação. Mas o acesso é desigual. Na prática, a rede não é uma malha horizontal, mas uma teia com nós privilegiados. Assim como os brâmanes tinham o monopólio do saber védico, os influenciadores e tecnocratas da internet detêm o capital simbólico da atenção. Um exemplo direto é o funcionamento dos fóruns de especialistas: enquanto certos perfis são ouvidos com autoridade, vozes dissidentes ou de baixa reputação digital são ignoradas ou atacadas, mesmo quando têm argumentos sólidos.

Safiya Noble, em Algorithms of Oppression (2018), explicita o viés racial e sexista dos algoritmos. Se as castas antigas se apoiavam na religião ou no nascimento, a casta digital encontra apoio nas equações matemáticas que decidem o que vemos. A opressão agora é automatizada, embutida em sistemas que fingem neutralidade. O exemplo clássico era e é o autocomplete do Google, que durante anos associava termos como “mulheres negras” a resultados hipersexualizados. Isso não é só uma falha técnica: é um espelho do preconceito da sociedade codificado em linguagem de máquina.

Shoshana Zuboff, em The Age of Surveillance Capitalism (2019), amplia a crítica ao mostrar como a extração de dados pessoais para lucro é a nova forma de exploração. A posição que cada um ocupa no ecossistema digital depende da quantidade de dados que gera e do valor que esses dados têm para o mercado. Há castas de dados, castas de atenção, castas de relevância econômica. Um usuário comum, que compartilha fotos de família e curte posts de amigos, não tem o mesmo “valor” para as plataformas que um criador de conteúdo com alto engajamento – ainda que este último esteja apenas reciclando tendências e memes, ou mesmo alimentando os velhos preconceitos ou criando novos preconceitos.

Jaron Lanier, em Ten Arguments for Deleting Your Social Media Accounts Right Now (2018), argumenta que as redes sociais moldam o comportamento humano de forma invisível e hierárquica. isso hoje é óbvio, mas na época pouco identificável. Pois os algoritmos premiam certos perfis e punem outros, criando uma aristocracia de influenciadores, enquanto o grosso da população digital permanece relegado a funções de reprodução e eco, ou, como eu gosto de falar: trabalhando de graça para influenciadores. 

Até mesmo o tecnofeudalismo, proposto por autores como Sydney Delmonso (2023), retoma o espírito das castas. No lugar do senhor feudal, temos CEOs de big techs. No lugar dos servos, usuários que produzem conteúdo e dados gratuitamente. A casta do “dado” alimenta a elite do capital informacional. Assim como o camponês medieval dependia da proteção do senhor para sobreviver, hoje dependemos das plataformas para existir socialmente. Perder um perfil, ser desmonetizado ou banido pode significar, para muitos, o desaparecimento digital, o que é equivalente à morte social.

Por fim, estudos recentes, como o de Nayana Kirasur e Shagun Jhaver (2023), mostram como a ideologia de castas encontra terreno fértil nas redes, especialmente na Índia. A elite digital – muitas vezes oriunda das castas superiores – instrumentaliza o espaço virtual para manter seus privilégios e marginalizar ainda mais os dalits. Comentários ofensivos são tolerados, denúncias não resultam em punições, e os algoritmos favorecem conteúdos conservadores – desde que gerem retorno à rede. Por isso, não é à toa que os barões do tecnofeudalismo se opõem à ideia de regulamentação das redes sociais e da internet.

Hoje vejo que as castas digitais não são apenas uma metáfora. São um modo de funcionamento. Não têm leis explícitas nem trajes visíveis, mas seus marcadores estão por toda parte: nos números, nos silêncios, na distribuição da atenção. E como romper essa lógica de estratificação tão apreciada pela natureza humana? Não sei – e percebo que o sistema de castas se tornará cada vez mais difícil de ser rompido.

Uma das coisas que mais sustentam todo o processo de castas é que, quando um grupo historicamente marginalizado é incluído no sistema de inclusão – ou do que chamo de democracia do acesso –, ele não transforma o sistema: apenas colabora para que o sistema continue como é. Isso acontece porque o desejo é apenas o de ser incluído no jogo – e não o de mudar as estruturas. E, para transformar as estruturas, não bastam boas intenções progressistas ou liberais: é preciso que aqueles que adentram o sistema por meio da democracia do acesso estejam dispostos a alterar o funcionamento das autarquias, do Estado e dos barões tecnofeudais. Claro que eu sei que não é nada fácil. Mas estou aqui a praticar democracia – ou a falar e a falar no banheiro, já que não sei cantar.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

O Prazer enquanto Estratégia de Dominação


Por Adu Verbis

Desde que me entendo como parte do jogo do poder no mundo das ideias, passei a compreender o prazer como uma ideia. Portanto, passei a ver algo inquietante no fato de que tudo o que mais desejamos – o toque, o riso, o sexo, o gosto doce – tenha sido tantas vezes organizado, mapeado, regulado, autorizado ou negado por aqueles que detêm o domínio das ideias. O prazer é pensado tanto para se exercer a liberdade como também para operar a dominação.

Se olho para trás, bem para trás, encontro no silêncio das pedras da Babilônia um rei de rosto imóvel e olhos de bronze que sobe ao leito com uma sacerdotisa. Não se trata ali de amor, nem de prazer íntimo, mas de uma ideia. Um teatro. Um rito. A cópula encena a união com a deusa Inanna, e com ela, o direito de governar. O prazer do corpo se torna senha de legitimação política. O povo assiste. E aprende: o prazer é coisa dos deuses. E dos reis.

Na Mesopotâmia e no Egito, o prazer era uma engrenagem simbólica da ordem. Nos palácios egípcios, banquetes, perfumes e danças não eram meros luxos – eram sinais de que os deuses aprovavam quem governava. O deleite sensorial, mesmo quando vivido por poucos, criava a ideia de estabilidade para muitos. O faraó, ao viver rodeado de delícias, representava não apenas um homem poderoso, mas o próprio equilíbrio cósmico. O prazer, novamente, como linguagem do poder.

Na Grécia, o prazer se tornou assunto filosófico. Alguns o temiam, outros o celebravam, mas quase todos sabiam que ali havia mais do que carne – havia conceito. As festas dionisíacas eram válvulas de escape, sim, mas também forma de controle: a cidade permitia o excesso porque sabia que ele voltaria à ordem. O prazer era permitido desde que temporário, ritualizado, interpretável. O corpo que gozava sabia que, logo depois, teria de retornar ao silêncio da razão.

Roma, império do concreto, foi ainda mais direta. Ao pão se somaram os jogos. Ao prazer individual, o espetáculo coletivo. Gladiadores, banhos públicos, orgias – tudo visível, tudo permitido, mas tudo também funcional. O gozo romano era administração de tensões sociais. Quanto mais o povo gritava no coliseu, menos gritava nas ruas. O prazer, agora, era gestão. E os imperadores sabiam: não se governa só com medo, governa-se também com euforia.

A Idade Média empurrou o prazer para o campo do pecado, mas isso não o enfraqueceu – apenas o tornou mais útil ao poder. A Igreja transformou o desejo em algo a ser vigiado. Quem desejava, precisava confessar. Quem confessava, se tornava previsível. O prazer não desapareceu: foi recodificado como transgressão. O controle, então, não era só externo, mas internalizado. A culpa – essa sim – se tornou a verdadeira máquina de dominação.

Com a modernidade, o prazer começou a se emancipar – mas só até certo ponto. O discurso da liberdade sexual e da autonomia do corpo andou lado a lado com a emergência do consumo. Desejar tornou-se não apenas um direito, mas um dever. A felicidade virou meta. O prazer virou promessa de realização. Mas quem fabrica essa promessa? E quem lucra com ela?

É nesse cenário que entra a pornografia contemporânea – não como tabu, mas como tecnologia de desejo. Não a critico por existir, mas pela forma como foi apropriada. A pornografia deixou de ser subversiva para se tornar repetição. O que se vê ali não é exatamente o que se deseja – é o que foi previamente roteirizado para ser desejado. A liberdade aparente de escolher entre milhões de vídeos esconde a repetição dos mesmos gestos, das mesmas narrativas, dos mesmos corpos. O prazer virou algoritmo.

E não é só questão de imagem. É questão de tempo, atenção, adestramento. A pornografia como indústria não vende sexo, vende hábito. Ela captura o desejo para devolvê-lo em embalagens previsíveis. Nada mais distante da transgressão do que o desejo programado. A tela oferece liberdade, mas exige passividade. E nisso, como nos antigos impérios, o prazer continua servindo a lógica do controle, mas agora em forma de dopamina e distração.

Marcuse dizia que certos prazeres são liberados apenas para neutralizar sua potência. Um orgasmo solitário diante da tela pode ser revolucionário para o indivíduo, mas inofensivo para o sistema. Talvez seja esse o ponto: o prazer que mais domina é o que se apresenta como emancipação, mas que, na prática, só amplia o cerco.

O problema nunca foi o prazer. O problema é quando ele deixa de ser criação para virar obediência disfarçada. Quando ele deixa de ser encontro e vira desempenho. Quando ele deixa de ser território do corpo e passa a ser propriedade do mercado.

Por isso, sigo desconfiando de toda ideia de prazer, mesmo quando o busco, faço-o desconfiado da minha própria necessidade. Desconfio também de toda promessa de liberdade que venha acompanhada de um manual de uso. Se o prazer pode ser pensado, e pode, então também pode ser libertado das ideias que o aprisionam. E talvez, só talvez, aí resida sua verdadeira força. Mas aí, tudo se torna por demais abstrato.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

O que Jean-Jacques Rousseau diria sobre os algoritmos?


Por Adu Verbis

Se eu pudesse conversar com Rousseau hoje, gostaria de perguntar se as redes sociais nasceram boas ou se se tornaram más. Mas creio que ele não ficaria surpreso com o estado atual da internet. Talvez apenas repetisse, com mais amargura: “O homem nasce livre, e por toda parte se encontra acorrentado.”

A diferença é que, agora, essas correntes brilham em LED, emitem sons agradáveis e nos distraem com doses contínuas de dopamina. Frequentemente me pego pensando: o que Rousseau diria sobre um mundo em que a liberdade é exaltada, mas a vigilância é aceita com naturalidade? Onde todos falam, mas quase ninguém escuta? Onde a vida pública é encenada numa vitrine digital e a privacidade virou moeda de troca?

Rousseau acreditava que o ser humano nasce bom, e que é a sociedade – com sua ordem artificial, suas comparações e hierarquias – que o corrompe. Sobre isso, ele escreveu:

“O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer 'isto é meu' e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.”
(Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, 1755)

As redes sociais parecem repetir esse gesto inaugural da propriedade privada, só que agora em outra dimensão: a do tempo, da atenção e da emoção. As grandes plataformas ergueram cercas invisíveis em torno daquilo que deveria ser livre – nossa expressão, nossos dados, nossos vínculos. E nós, “simples o suficiente”, clicamos: “Aceito.”

Pessoas comuns, que poderiam conviver com gentileza e simplicidade, tornam-se agressivas, exibicionistas ou manipuladoras sob a influência das dinâmicas digitais. A lógica do engajamento – do like, do retweet, do story – estimula vaidades e conflitos, que Rousseau via como produtos da comparação:

“Tornar-se visível, ser visto, ser considerado, ser estimado e preferido aos outros – eis a grande e universal paixão que todas as nossas instituições nutrem sem cessar.”

Hoje, somos guiados por quem tem mais seguidores. E para sermos vistos, nos deformamos. O mais grave é que esse comportamento não é apenas espontâneo: é induzido. A chamada “engenharia social digital” – baseada na coleta e análise de dados – molda nossas decisões sem que percebamos. Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância (2019), demonstrou que as plataformas não apenas nos observam: nos antecipam.

“Eles sabem tudo sobre nós. Nós não sabemos quase nada sobre eles.”

O escândalo da Cambridge Analytica mostrou como 87 milhões de usuários tiveram seus dados explorados para manipular eleições. Rousseau, sempre desconfiado da representação política, teria visto nisso uma nova forma de corrupção da vontade coletiva – uma vontade manipulada antes mesmo de nascer.

Se antes ele criticava um contrato social que subjugava o povo à elite econômica e política, hoje viveríamos sob um contrato digital – aceito – em que entregamos voluntariamente nossos dados a empresas que moldam o que vemos, desejamos, acreditamos e curtimos.

Dizem que a internet é espaço de livre expressão, mas essa liberdade está condicionada por algoritmos que recompensam as mentiras e o sensacionalismo. Um estudo de 2021 do MIT Media Lab concluiu que fake news se espalham seis vezes mais rápido do que as verdadeiras no X. Isso porque são mais emocionais, mais “clicáveis” – e, portanto, mais valiosas comercialmente. Mas Rousseau já nos alertava:

“O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, se ele não transformar sua força em direito e a obediência em dever.”

Hoje, a força é o algoritmo. O “direito” é a política opaca das plataformas. A obediência se dá em forma de hábitos – hábitos que internalizamos sem perceber.

Olho ao redor e vejo a liberdade esvaziada. Uns a redefinem de maneira fantasiosa; outros, a esvaziam por completo. Rousseau não se surpreenderia. Ele já conhecia o drama de uma humanidade que confunde civilização com progresso. Que acredita que mais ferramentas e mais informação significam, automaticamente, mais sabedoria. Que exagera sempre que fala em liberdade.

Talvez ele dissesse que precisamos reaprender a ser livres. Que liberdade não é simplesmente poder dizer qualquer coisa online ou usar uma VPN – mas resistir ao impulso de dizer o que esperam que digamos e saber navegar sem ser notado pelos algoritmos. Que liberdade não é acumular seguidores e manipulá-los.

Eu não tenho respostas definitivas – porque não sei o que é definitivo. Mas desconfio que Rousseau veria nas redes sociais um terreno cercado com dono, e nesse dono – o algoritmo – o novo fundador da sociedade civil. Ou talvez apenas lamentasse, em silêncio, que deixamos o “homem natural” ser domesticado por máquinas.

E talvez, como em sua época, nos deixasse um aviso: só seremos verdadeiramente livres quando tivermos consciência das correntes que nos prendem – inclusive aquelas que vêm disfarçadas de conexão. Mas eu, hoje, diria a Rousseau: talvez o tempo da liberdade tenha acabado. O que resta é desenhar prisões mais humanas – onde não haja abusos que desumanizem – e preservar direitos mínimos que nos deem ao menos a ilusão de uma certa dignidade e liberdade, já que voluntariamente aceitamos o que nos foi oferecido.

* Imagem:
Jean-Jacques Rousseau (1712–1778)
Voltaire (1694–1778) 
John Locke (1632–1704) 
Montesquieu (1689–1755

sexta-feira, 2 de maio de 2025

A Inteligência Inter-Artificial e o Entrelugar Cognitivo


Por Adu Verbis

Este texto visa refletir sobre a dinâmica do conhecimento que emerge quando humanos e máquinas interagem. Longe de tratar a inteligência artificial como mera extensão da racionalidade humana, busco explorar o surgimento de um novo regime cognitivo: um entrelugar cognitivo, no qual as subjetividades humanas e as lógicas computacionais se entrecruzam, dando origem a formas híbridas de pensamento, lógica e estética e uma possível ética.

O termo "entrelugar" tem origem na teoria pós-colonial de Homi Bhabha, para quem esse “in-between space” (The Location of Culture – 1994) representa um espaço de hibridismo cultural, onde identidades não são fixas, mas emergem no encontro e no conflito entre culturas colonizadoras e colonizadas. Nesse entrelugar, o sujeito pós-colonial não pertence inteiramente a uma cultura nem a outra, mas cria novas formas de ser e de significar, a partir da fricção entre as duas.

Aqui, entretanto, utilizo o conceito sob outro registro, inspirado em formulações filosófico-cognitivas. O entrelugar cognitivo é um espaço mental e epistemológico em que modos distintos de consciência e pensamento – como a racionalidade lógica e a imaginação simbólica, ou, neste caso, a cognição humana e os processos computacionais – coexistem e se afetam mutuamente. Trata-se de um território intersticial – que está ou ocorre nos espaços entre estruturas, partes ou elementos –, onde nenhuma lógica opera de forma pura, e onde as fronteiras do pensar tornam-se porosas e dinâmicas. Em ecologia, intersticiais são organismos, especialmente animais, que vivem nos espaços entre os grãos de sedimentos, como areia ou cascalho, em ambientes aquáticos.

Bem voltada ao que venha a ser esse entrelugar cognitivo, a proposta aqui, portanto, não é opor inteligência “natural” e “artificial”, mas compreender o que se constitui no encontro entre ambas – e que chamo de inteligência inter-artificial. A inteligência inter-artificial designa esse domínio compartilhado, permeado por causalidades recíprocas, em que o pensamento assume contornos que antes pareciam impensáveis. Ao longo deste texto, examino esse espaço emergente, suas dinâmicas, suas implicações e suas raízes intersticiais.

A Inteligência Nunca Esteve Só

Quando pensamos em inteligência, raramente consideramos que talvez ela nem exista de forma isolada. Desde suas origens, o pensamento humano se formou em relação a algo – seja por espelhar uma metafísica, seja por reagir a um empirismo. O que chamamos de “inteligência natural” não é uma essência inata do indivíduo, mas uma resposta adaptativa ao meio: às condições ambientais, à linguagem herdada, aos instrumentos utilizados, aos afetos compartilhados. O ser humano nunca pensa no vazio; ele pensa com, através e contra aquilo que o circunda. A inteligência, portanto, emerge do contato – e esse contato é constitutivo porque há interconexões, porque revela que a inteligência é uma construção que se dá no processo de interação entre o humano, o artifício e a natureza, e não algo que surge do nada.

Entre a Mente e o Mundo: O Entrelugar

A relação entre sujeito e meio não é um simples canal por onde passam dados, mas um espaço cognitivo efetivo – um entrelugar onde o externo e o interno se interpenetram. É nesse espaço que acontecem o aprendizado, a hesitação, a interpretação e a concepção. O conhecimento não é um mero acúmulo de verdades, mas um acontecimento de tradução entre mundos: o mental e o físico.

A Chegada da Máquina Pensante

Com o advento da inteligência artificial, esse entrelugar se expande. A IA não é apenas uma ferramenta de cálculo; ela reage, aprende, oferece respostas e sugere caminhos. Ela simula cognição, mas vai além: ela provoca, estimula, inquieta. Ao interagir com a IA, o ser humano é levado a pensar de novas maneiras – mais rápidas, mais combinatórias, mais sistemáticas ou mais duvidosas.

Inteligência Inter-Artificial: Não é Soma, é Entre

O que nasce da interação entre humanos e máquinas não é simplesmente uma soma da cognição humana com a computacional. O que se forma é um campo de forças, onde a subjetividade humana é afetada pela lógica algorítmica, e a máquina é continuamente reconfigurada pelas escolhas humanas. Esse espaço de interação é a inteligência inter-artificial: uma inteligência que não pertence exclusivamente a nenhum dos polos, mas que emerge do contato.

Causalidades Recíprocas, Efeitos Cruzados

O que a IA desperta no humano gera efeitos secundários: novas decisões, mudanças de percepção, reconfiguração de hábitos. E o que o humano ensina ou alimenta na IA também gera consequências: padrões aprendidos, vieses codificados, respostas adaptadas. O ciclo é contínuo e recursivo. A causalidade, portanto, se torna uma espiral, onde o conhecimento é um fenômeno emergente.

Um Novo Regime de Sentido

A inteligência inter-artificial propõe uma nova forma de pensar o conhecimento. Ela aponta para um regime de sentido no qual a cognição é compartilhada, distribuída e transindividual. Um conhecimento que não é apenas armazenado, mas vivido na interface: entre gesto e dado, entre afeto e algoritmo, entre subjetividade e sistema – e é desse entrelaçamento que emerge uma nova inteligência. Porque a inteligência não é substância isolada, mas efeito de artifícios – não como o falso, mas como aquilo que, desde sua origem (artificium), já traz a marca da elaboração e da cognição: arte (ars) e ação (facere). Assim como os gregos opunham phýsis a téchnē, a inteligência não nasce no vazio da natureza, mas se forja na articulação entre meios, técnicas e encontros.

Popper e o Espaço Intermediário do Conhecimento

Karl Popper, ao propor sua teoria dos Três Mundos – o mundo físico (mundo 1), o mundo mental (mundo 2) e o mundo dos produtos objetivos da mente, como teorias e argumentos (mundo 3) – já apontava para a existência de um domínio que não se restringe ao sujeito nem se reduz ao objeto. O mundo 3, para Popper, é um espaço compartilhado onde ideias, hipóteses, teorias e criações simbólicas habitam. Ele é acessado tanto por humanos quanto por inteligências artificiais, que operam sobre esses conteúdos simbólicos.

É nesse “mundo 3 popperiano” que podemos situar o entrelugar cognitivo da inteligência inter-artificial: um espaço onde se processam, confrontam e transformam enunciados provenientes tanto do humano quanto da máquina, em um campo intersubjetivo de sentido. Esse entrelugar, alimentado por estruturas lógicas (algoritmos) e subjetivas (intuições, desejos, metáforas humanas), não é passivo. Ele reage, produz e transforma. Ele é tão real quanto os mundos físico e mental, pois possui efeitos tangíveis sobre ambos.

O Cognitivo Enquanto Colonialidade

Pego emprestado o vocabulário da teoria pós-colonial de Homi Bhabha, especialmente o termo in-between space – o entrelugar – (em The Location of Culture, 1994), e aplico-o à ideia de que a inteligência humana, ao se deparar com a lógica algorítmica da IA, não apenas é desafiada: ela é interpelada, colonizada por uma nova forma de pensar. A inteligência artificial introduz estruturas, velocidades e padrões que reorganizam os modos de atenção, decisão e criação.

Contudo, essa colonização não ocorre sem resistência. Assim como o sujeito culturalmente colonizado, o humano-cognoscente não absorve passivamente os códigos da máquina. Ele traduz, contesta, hibridiza.

É nesse gesto de resposta – torção criativa e rebeldia – que se constitui uma via de identidade cognitiva: nem inteiramente humana, nem simplesmente artificial, mas uma inteligência inter-artificial. Essa subjetividade emergente carrega marcas da colonização algorítmica, sim, mas a ela mistura sua densidade simbólica, seus afetos, suas hesitações e conflitos e perspectivas de mundo.

Enfim, não se trata de fusão harmônica, mas de fricção produtiva. A máquina, em sua lógica de cálculo, invade a mente humana; e a mente humana, em sua potência de desvio, desfigura o código. O resultado é um entrelugar – espaço de tradução e reinvenção – onde a cognição, como identidade pós-humana, deixa de ser essência para tornar-se travessia. A inteligência inter-artificial constitui-se nesse limiar: entre a máquina, constituída de lógica, e a humanidade, com seus conflitos.