sexta-feira, 2 de maio de 2025

A Inteligência Inter-Artificial e o Entrelugar Cognitivo


Por Adu Verbis

Este texto visa refletir sobre a dinâmica do conhecimento que emerge quando humanos e máquinas interagem. Longe de tratar a inteligência artificial como mera extensão da racionalidade humana, busco explorar o surgimento de um novo regime cognitivo: um entrelugar cognitivo, no qual as subjetividades humanas e as lógicas computacionais se entrecruzam, dando origem a formas híbridas de pensamento, lógica e estética e uma possível ética.

O termo "entrelugar" tem origem na teoria pós-colonial de Homi Bhabha, para quem esse “in-between space” (The Location of Culture – 1994) representa um espaço de hibridismo cultural, onde identidades não são fixas, mas emergem no encontro e no conflito entre culturas colonizadoras e colonizadas. Nesse entrelugar, o sujeito pós-colonial não pertence inteiramente a uma cultura nem a outra, mas cria novas formas de ser e de significar, a partir da fricção entre as duas.

Aqui, entretanto, utilizo o conceito sob outro registro, inspirado em formulações filosófico-cognitivas. O entrelugar cognitivo é um espaço mental e epistemológico em que modos distintos de consciência e pensamento – como a racionalidade lógica e a imaginação simbólica, ou, neste caso, a cognição humana e os processos computacionais – coexistem e se afetam mutuamente. Trata-se de um território intersticial – que está ou ocorre nos espaços entre estruturas, partes ou elementos –, onde nenhuma lógica opera de forma pura, e onde as fronteiras do pensar tornam-se porosas e dinâmicas. Em ecologia, intersticiais são organismos, especialmente animais, que vivem nos espaços entre os grãos de sedimentos, como areia ou cascalho, em ambientes aquáticos.

Bem voltada ao que venha a ser esse entrelugar cognitivo, a proposta aqui, portanto, não é opor inteligência “natural” e “artificial”, mas compreender o que se constitui no encontro entre ambas – e que chamo de inteligência inter-artificial. A inteligência inter-artificial designa esse domínio compartilhado, permeado por causalidades recíprocas, em que o pensamento assume contornos que antes pareciam impensáveis. Ao longo deste texto, examino esse espaço emergente, suas dinâmicas, suas implicações e suas raízes intersticiais.

A Inteligência Nunca Esteve Só

Quando pensamos em inteligência, raramente consideramos que talvez ela nem exista de forma isolada. Desde suas origens, o pensamento humano se formou em relação a algo – seja por espelhar uma metafísica, seja por reagir a um empirismo. O que chamamos de “inteligência natural” não é uma essência inata do indivíduo, mas uma resposta adaptativa ao meio: às condições ambientais, à linguagem herdada, aos instrumentos utilizados, aos afetos compartilhados. O ser humano nunca pensa no vazio; ele pensa com, através e contra aquilo que o circunda. A inteligência, portanto, emerge do contato – e esse contato é constitutivo porque há interconexões, porque revela que a inteligência é uma construção que se dá no processo de interação entre o humano, o artifício e a natureza, e não algo que surge do nada.

Entre a Mente e o Mundo: O Entrelugar

A relação entre sujeito e meio não é um simples canal por onde passam dados, mas um espaço cognitivo efetivo – um entrelugar onde o externo e o interno se interpenetram. É nesse espaço que acontecem o aprendizado, a hesitação, a interpretação e a concepção. O conhecimento não é um mero acúmulo de verdades, mas um acontecimento de tradução entre mundos: o mental e o físico.

A Chegada da Máquina Pensante

Com o advento da inteligência artificial, esse entrelugar se expande. A IA não é apenas uma ferramenta de cálculo; ela reage, aprende, oferece respostas e sugere caminhos. Ela simula cognição, mas vai além: ela provoca, estimula, inquieta. Ao interagir com a IA, o ser humano é levado a pensar de novas maneiras – mais rápidas, mais combinatórias, mais sistemáticas ou mais duvidosas.

Inteligência Inter-Artificial: Não é Soma, é Entre

O que nasce da interação entre humanos e máquinas não é simplesmente uma soma da cognição humana com a computacional. O que se forma é um campo de forças, onde a subjetividade humana é afetada pela lógica algorítmica, e a máquina é continuamente reconfigurada pelas escolhas humanas. Esse espaço de interação é a inteligência inter-artificial: uma inteligência que não pertence exclusivamente a nenhum dos polos, mas que emerge do contato.

Causalidades Recíprocas, Efeitos Cruzados

O que a IA desperta no humano gera efeitos secundários: novas decisões, mudanças de percepção, reconfiguração de hábitos. E o que o humano ensina ou alimenta na IA também gera consequências: padrões aprendidos, vieses codificados, respostas adaptadas. O ciclo é contínuo e recursivo. A causalidade, portanto, se torna uma espiral, onde o conhecimento é um fenômeno emergente.

Um Novo Regime de Sentido

A inteligência inter-artificial propõe uma nova forma de pensar o conhecimento. Ela aponta para um regime de sentido no qual a cognição é compartilhada, distribuída e transindividual. Um conhecimento que não é apenas armazenado, mas vivido na interface: entre gesto e dado, entre afeto e algoritmo, entre subjetividade e sistema – e é desse entrelaçamento que emerge uma nova inteligência. Porque a inteligência não é substância isolada, mas efeito de artifícios – não como o falso, mas como aquilo que, desde sua origem (artificium), já traz a marca da elaboração e da cognição: arte (ars) e ação (facere). Assim como os gregos opunham phýsis a téchnē, a inteligência não nasce no vazio da natureza, mas se forja na articulação entre meios, técnicas e encontros.

Popper e o Espaço Intermediário do Conhecimento

Karl Popper, ao propor sua teoria dos Três Mundos – o mundo físico (mundo 1), o mundo mental (mundo 2) e o mundo dos produtos objetivos da mente, como teorias e argumentos (mundo 3) – já apontava para a existência de um domínio que não se restringe ao sujeito nem se reduz ao objeto. O mundo 3, para Popper, é um espaço compartilhado onde ideias, hipóteses, teorias e criações simbólicas habitam. Ele é acessado tanto por humanos quanto por inteligências artificiais, que operam sobre esses conteúdos simbólicos.

É nesse “mundo 3 popperiano” que podemos situar o entrelugar cognitivo da inteligência inter-artificial: um espaço onde se processam, confrontam e transformam enunciados provenientes tanto do humano quanto da máquina, em um campo intersubjetivo de sentido. Esse entrelugar, alimentado por estruturas lógicas (algoritmos) e subjetivas (intuições, desejos, metáforas humanas), não é passivo. Ele reage, produz e transforma. Ele é tão real quanto os mundos físico e mental, pois possui efeitos tangíveis sobre ambos.

O Cognitivo Enquanto Colonialidade

Pego emprestado o vocabulário da teoria pós-colonial de Homi Bhabha, especialmente o termo in-between space – o entrelugar – (em The Location of Culture, 1994), e aplico-o à ideia de que a inteligência humana, ao se deparar com a lógica algorítmica da IA, não apenas é desafiada: ela é interpelada, colonizada por uma nova forma de pensar. A inteligência artificial introduz estruturas, velocidades e padrões que reorganizam os modos de atenção, decisão e criação.

Contudo, essa colonização não ocorre sem resistência. Assim como o sujeito culturalmente colonizado, o humano-cognoscente não absorve passivamente os códigos da máquina. Ele traduz, contesta, hibridiza.

É nesse gesto de resposta – torção criativa e rebeldia – que se constitui uma via de identidade cognitiva: nem inteiramente humana, nem simplesmente artificial, mas uma inteligência inter-artificial. Essa subjetividade emergente carrega marcas da colonização algorítmica, sim, mas a ela mistura sua densidade simbólica, seus afetos, suas hesitações e conflitos e perspectivas de mundo.

Enfim, não se trata de fusão harmônica, mas de fricção produtiva. A máquina, em sua lógica de cálculo, invade a mente humana; e a mente humana, em sua potência de desvio, desfigura o código. O resultado é um entrelugar – espaço de tradução e reinvenção – onde a cognição, como identidade pós-humana, deixa de ser essência para tornar-se travessia. A inteligência inter-artificial constitui-se nesse limiar: entre a máquina, constituída de lógica, e a humanidade, com seus conflitos.

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