A diferença é que, agora, essas correntes brilham em LED, emitem sons agradáveis e nos distraem com doses contínuas de dopamina. Frequentemente me pego pensando: o que Rousseau diria sobre um mundo em que a liberdade é exaltada, mas a vigilância é aceita com naturalidade? Onde todos falam, mas quase ninguém escuta? Onde a vida pública é encenada numa vitrine digital e a privacidade virou moeda de troca?
Rousseau acreditava que o ser humano nasce bom, e que é a sociedade – com sua ordem artificial, suas comparações e hierarquias – que o corrompe. Sobre isso, ele escreveu:
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer 'isto é meu' e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.”(Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, 1755)
As redes sociais parecem repetir esse gesto inaugural da propriedade privada, só que agora em outra dimensão: a do tempo, da atenção e da emoção. As grandes plataformas ergueram cercas invisíveis em torno daquilo que deveria ser livre – nossa expressão, nossos dados, nossos vínculos. E nós, “simples o suficiente”, clicamos: “Aceito.”
Pessoas comuns, que poderiam conviver com gentileza e simplicidade, tornam-se agressivas, exibicionistas ou manipuladoras sob a influência das dinâmicas digitais. A lógica do engajamento – do like, do retweet, do story – estimula vaidades e conflitos, que Rousseau via como produtos da comparação:
“Tornar-se visível, ser visto, ser considerado, ser estimado e preferido aos outros – eis a grande e universal paixão que todas as nossas instituições nutrem sem cessar.”
Hoje, somos guiados por quem tem mais seguidores. E para sermos vistos, nos deformamos. O mais grave é que esse comportamento não é apenas espontâneo: é induzido. A chamada “engenharia social digital” – baseada na coleta e análise de dados – molda nossas decisões sem que percebamos. Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância (2019), demonstrou que as plataformas não apenas nos observam: nos antecipam.
“Eles sabem tudo sobre nós. Nós não sabemos quase nada sobre eles.”
O escândalo da Cambridge Analytica mostrou como 87 milhões de usuários tiveram seus dados explorados para manipular eleições. Rousseau, sempre desconfiado da representação política, teria visto nisso uma nova forma de corrupção da vontade coletiva – uma vontade manipulada antes mesmo de nascer.
Se antes ele criticava um contrato social que subjugava o povo à elite econômica e política, hoje viveríamos sob um contrato digital – aceito – em que entregamos voluntariamente nossos dados a empresas que moldam o que vemos, desejamos, acreditamos e curtimos.
Dizem que a internet é espaço de livre expressão, mas essa liberdade está condicionada por algoritmos que recompensam as mentiras e o sensacionalismo. Um estudo de 2021 do MIT Media Lab concluiu que fake news se espalham seis vezes mais rápido do que as verdadeiras no X. Isso porque são mais emocionais, mais “clicáveis” – e, portanto, mais valiosas comercialmente. Mas Rousseau já nos alertava:
“O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, se ele não transformar sua força em direito e a obediência em dever.”
Hoje, a força é o algoritmo. O “direito” é a política opaca das plataformas. A obediência se dá em forma de hábitos – hábitos que internalizamos sem perceber.
Olho ao redor e vejo a liberdade esvaziada. Uns a redefinem de maneira fantasiosa; outros, a esvaziam por completo. Rousseau não se surpreenderia. Ele já conhecia o drama de uma humanidade que confunde civilização com progresso. Que acredita que mais ferramentas e mais informação significam, automaticamente, mais sabedoria. Que exagera sempre que fala em liberdade.
Talvez ele dissesse que precisamos reaprender a ser livres. Que liberdade não é simplesmente poder dizer qualquer coisa online ou usar uma VPN – mas resistir ao impulso de dizer o que esperam que digamos e saber navegar sem ser notado pelos algoritmos. Que liberdade não é acumular seguidores e manipulá-los.
Eu não tenho respostas definitivas – porque não sei o que é definitivo. Mas desconfio que Rousseau veria nas redes sociais um terreno cercado com dono, e nesse dono – o algoritmo – o novo fundador da sociedade civil. Ou talvez apenas lamentasse, em silêncio, que deixamos o “homem natural” ser domesticado por máquinas.
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