Por Adu Verbis
Logo no início dos anos 2000, quando a internet começava a se popularizar de forma mais ampla, eu visualizava um mundo utópico quando o assunto era liberdade e redes sociais. A internet me parecia, de fato, uma forma de amplificação da democracia: todos com voz, todos com espaço, e a liberdade que ela poderia oferecer não destruiria as instituições que sustentavam (e ainda sustentam) a democracia. Afinal, a democracia só se mantém por meio das instituições que trabalham pela sua preservação.
Porém, a democracia não é perfeita. Ela é um rito de acesso à ideia de que todos são iguais perante a lei. Mas a lei é um código frio, e nem sempre quem a administra é ético o suficiente para garantir que todos sejam iguais também perante os semelhantes – e não apenas teoricamente. Para que a democracia pudesse se tornar perfeita, seria preciso uma revolução para decapitar as cabeças das autarquias, acabar com reinados e extinguir as religiões – uma instituição que corrobora o sistema de castas – e começar tudo do zero. Claro que estou sendo utópico e dizendo besteiras. Pois bem, deixa eu ser sério, porque o assunto exige seriedade.
A partir de 2010, com o crescimento massivo das redes sociais, fui percebendo que o mundo digital reproduz modelos de castas, com nova estética e lógica algorítmica, mas com hierarquias tão antigas quanto as castas da Índia ou as divisões sociais da Europa antes das revoluções modernas. E, nos primeiros anos dessa transição (entre 2005 e 2012), quando a internet como a conhecemos hoje e as redes sociais estavam em sua fase inicial, eu gostava de estudar o sistema de castas, porque essa ideia também se sustenta graças a instituições que trabalham para mantê-la, e a religião é uma dessas instituições. Além disso, a natureza humana tem uma forte tendência a estratificar processos de diferenciação e a criar camadas e subcamadas de valores.
Anos depois, ao reler autores como Isabel Wilkerson, em Caste: The Origins of Our Discontents (publicado em 2020), reconheci o padrão. Wilkerson descreve a casta como uma estrutura invisível que organiza a sociedade com base em pureza, função e hereditariedade. Então percebi que não é necessário um rei nem um templo: basta a crença coletiva de que certos grupos "pertencem" ao topo e outros, à base. Nas redes sociais, isso se traduz em quem tem visibilidade, quem dita tendências, quem fala e é ouvido – e quem não é.
Steve Baldwin e Bill Lessard, já em 2000, apontavam, em NetSlaves, o surgimento de castas digitais no mercado de trabalho da internet. Havia os robber barons – magnatas digitais – e os mole people, trabalhadores invisíveis que mantinham tudo funcionando sem nunca aparecer. A lógica permanece: criadores de conteúdo periféricos, moderadores mal pagos, programadores terceirizados, todos operam nos bastidores, enquanto a elite digital brilha.
Em 2007, Danah Boyd, em sua pesquisa sobre adolescentes no MySpace e Facebook, mostrou como a segregação digital reflete divisões raciais e econômicas. Isso em 2007 – e já estamos em 2025, e essa dinâmica segregacional se amplificou. Hoje temos tribunais segregacionistas, fascistas, nazistas e outros tantos “ismos”. Todo mundo sabe que o espaço digital não é neutro: os códigos, interfaces e algoritmos são moldados por valores sociais, morais e econômicos. Como nas castas, o pertencimento é marcado desde o início, e a mobilidade é limitada.
É fácil ver isso no cotidiano: uma adolescente negra que começa um canal de beleza pode ter vídeos com qualidade, carisma e consistência, mas, se não for impulsionada por algoritmos que favorecem padrões eurocêntricos de beleza, permanecerá invisível. Enquanto isso, influenciadores com aparência considerada mais “aceitável” pela lógica hegemônica são premiados com alcance e patrocínios desde os primeiros vídeos. Podemos ver o resultado disso no investimento que os barões dos jogos e apostas (bets) fazem para cooptar influenciadores.
Contudo, na complexa geografia digital, a Deep Web e, mais especificamente, a Dark Web, funcionam como territórios onde a liberdade encontra limites e paradoxos. Esses espaços são celebrados por oferecerem anonimato e resistência à vigilância, abrigando desde ativistas e dissidentes até mercados ilegais e redes de crime organizado, como todo mundo sabe.
No entanto, vejo que, nessa aparente liberdade, está imersa uma forma de estratificação: o acesso ao conhecimento técnico, o capital simbólico dentro dessas redes ocultas e a participação em seus sistemas próprios de poder criam castas digitais tão rígidas e excludentes quanto aquelas visíveis nas redes sociais tradicionais ou na web legalizada.
Além disso, a dinâmica da segurança nesses ambientes, baseada no complexo processo de anonimato, exige constante vigilância e controle, tornando o equilíbrio entre proteção e exposição uma questão delicada e instável. Assim, mesmo onde a promessa de liberdade é mais intensa, a realidade revela um funcionamento paradoxal, onde a hierarquia e a segregação seguem marcando quem pode agir, influenciar e sobreviver nesse submundo digital.
Vale lembrar que foram os ideólogos da internet livre, muitos deles alinhados à vertente dos anarquistas digitais, como John Perry Barlow, Richard Stallman e Julian Assange, assim como outros pensadores como Tim Berners-Lee, Cory Doctorow e Mitchell Baker, que idealizaram a ideia de uma internet livre e aberta. Portando, é bom ressaltar, que a Dark Web, por sua vez, é uma consequência da complexa natureza humana, um território onde coexistem valores que reprimem e valores que versam liberdade, refletindo as contradições inerentes ao próprio ser humano e suas relações de poder, e por assim dizer, e brincando com a maleabilidade das palavras e da língua: poder legalizado e poder ilegal. Poder autorizado e poder não autorizado.
Bem, voltando a web legalizada, Thenmozhi Soundararajan, ativista e autora de The Trauma of Caste (2022), alerta para a continuidade do sistema de castas no digital. Segundo ela, os dalits – grupo social da Índia historicamente marginalizado – enfrentam exclusões semelhantes na rede: discursos apagados, algoritmos que não os promovem, denúncias ignoradas. A casta, mesmo fora da geografia da Índia, continua como um padrão de exclusão e silenciamento. Algo parecido ocorre no Brasil com as populações indígenas e quilombolas, que muitas vezes precisam recorrer a coletivos ou ONGs para terem suas vozes ouvidas, já que seus perfis não têm o mesmo “valor de atenção” para as plataformas.
Já Manuel Castells, em A Sociedade em Rede (1996, edição brasileira de 1999), fala de uma “sociedade em rede” onde o poder flui por meio do acesso à informação. Mas o acesso é desigual. Na prática, a rede não é uma malha horizontal, mas uma teia com nós privilegiados. Assim como os brâmanes tinham o monopólio do saber védico, os influenciadores e tecnocratas da internet detêm o capital simbólico da atenção. Um exemplo direto é o funcionamento dos fóruns de especialistas: enquanto certos perfis são ouvidos com autoridade, vozes dissidentes ou de baixa reputação digital são ignoradas ou atacadas, mesmo quando têm argumentos sólidos.
Safiya Noble, em Algorithms of Oppression (2018), explicita o viés racial e sexista dos algoritmos. Se as castas antigas se apoiavam na religião ou no nascimento, a casta digital encontra apoio nas equações matemáticas que decidem o que vemos. A opressão agora é automatizada, embutida em sistemas que fingem neutralidade. O exemplo clássico era e é o autocomplete do Google, que durante anos associava termos como “mulheres negras” a resultados hipersexualizados. Isso não é só uma falha técnica: é um espelho do preconceito da sociedade codificado em linguagem de máquina.
Shoshana Zuboff, em The Age of Surveillance Capitalism (2019), amplia a crítica ao mostrar como a extração de dados pessoais para lucro é a nova forma de exploração. A posição que cada um ocupa no ecossistema digital depende da quantidade de dados que gera e do valor que esses dados têm para o mercado. Há castas de dados, castas de atenção, castas de relevância econômica. Um usuário comum, que compartilha fotos de família e curte posts de amigos, não tem o mesmo “valor” para as plataformas que um criador de conteúdo com alto engajamento – ainda que este último esteja apenas reciclando tendências e memes, ou mesmo alimentando os velhos preconceitos ou criando novos preconceitos.
Jaron Lanier, em Ten Arguments for Deleting Your Social Media Accounts Right Now (2018), argumenta que as redes sociais moldam o comportamento humano de forma invisível e hierárquica. isso hoje é óbvio, mas na época pouco identificável. Pois os algoritmos premiam certos perfis e punem outros, criando uma aristocracia de influenciadores, enquanto o grosso da população digital permanece relegado a funções de reprodução e eco, ou, como eu gosto de falar: trabalhando de graça para influenciadores.
Até mesmo o tecnofeudalismo, proposto por autores como Sydney Delmonso (2023), retoma o espírito das castas. No lugar do senhor feudal, temos CEOs de big techs. No lugar dos servos, usuários que produzem conteúdo e dados gratuitamente. A casta do “dado” alimenta a elite do capital informacional. Assim como o camponês medieval dependia da proteção do senhor para sobreviver, hoje dependemos das plataformas para existir socialmente. Perder um perfil, ser desmonetizado ou banido pode significar, para muitos, o desaparecimento digital, o que é equivalente à morte social.
Por fim, estudos recentes, como o de Nayana Kirasur e Shagun Jhaver (2023), mostram como a ideologia de castas encontra terreno fértil nas redes, especialmente na Índia. A elite digital – muitas vezes oriunda das castas superiores – instrumentaliza o espaço virtual para manter seus privilégios e marginalizar ainda mais os dalits. Comentários ofensivos são tolerados, denúncias não resultam em punições, e os algoritmos favorecem conteúdos conservadores – desde que gerem retorno à rede. Por isso, não é à toa que os barões do tecnofeudalismo se opõem à ideia de regulamentação das redes sociais e da internet.
Hoje vejo que as castas digitais não são apenas uma metáfora. São um modo de funcionamento. Não têm leis explícitas nem trajes visíveis, mas seus marcadores estão por toda parte: nos números, nos silêncios, na distribuição da atenção. E como romper essa lógica de estratificação tão apreciada pela natureza humana? Não sei – e percebo que o sistema de castas se tornará cada vez mais difícil de ser rompido.
Uma das coisas que mais sustentam todo o processo de castas é que, quando um grupo historicamente marginalizado é incluído no sistema de inclusão – ou do que chamo de democracia do acesso –, ele não transforma o sistema: apenas colabora para que o sistema continue como é. Isso acontece porque o desejo é apenas o de ser incluído no jogo – e não o de mudar as estruturas. E, para transformar as estruturas, não bastam boas intenções progressistas ou liberais: é preciso que aqueles que adentram o sistema por meio da democracia do acesso estejam dispostos a alterar o funcionamento das autarquias, do Estado e dos barões tecnofeudais. Claro que eu sei que não é nada fácil. Mas estou aqui a praticar democracia – ou a falar e a falar no banheiro, já que não sei cantar.
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