segunda-feira, 21 de julho de 2025

As Mulheres na Obra de Vermeer





Por Adu Verbis

Eu sou a mulher que habita o silêncio dos quadros de Vermeer. Sou a que lê cartas diante da luz da janela, a que afina o alaúde num fim de tarde imóvel, a que serve leite como se o mundo dependesse disso. Não tenho nome, nem idade. Sou todas e nenhuma. Vivo em quartos onde a luz pousa como um segredo, onde o tempo parece esquecer de passar. Ali, enquanto o sol escorre pelas janelas da esquerda, eu existo como pigmentos em suspensão.

Fui pintada em meio à rotina, mas Vermeer viu em mim algo mais. Ele me deu espaço, quietude e uma dignidade com sombras azuladas. Quando todos olhavam para guerras, reis e naufrágios, ele olhou para mim. Uma mulher comum, num instante qualquer, como se quisesse me transformar em eternidade.

Às vezes, leio uma carta de amor. Às vezes, apenas seguro algum objeto como se fosse um utensílio feito de luz e de pensamento. Há momentos em que o mundo todo cabe numa pérola em minha orelha, e eu sou luz refletida pela pérola. Outras vezes, sou refletida em espelho. Talvez esse eu refletido não me pertença, mas mesmo assim, meu reflexo está no espelho como se eu fosse também o reflexo e o espelho.

Não sou musa, nem nunca pensei em ser musa. Dizer que sou a presença dos contornos feitos de cores fica de bom tom. Não sou objeto nem sujeito. Quem sabe, sou enigma... Vermeer não me idealizou. Talvez eu seja seu pensamento. Ele queria que eu falasse alguma coisa para ele escutar, mas preferiu pintar meu silêncio como quem escuta uma oração, ou mesmo escutava o pulsar do meu coração, e assim esquecia de pintar a minha voz.

Enquanto outros pintores tornavam as mulheres alegorias, ele me fez, e fez as outras que sou, reais enquanto reflexos. Com mãos firmes e olhos atentos, captou o peso da espera, o calor de um gesto, a luz na curva dos ombros. Mostrou que dentro de cada tarefa trivial precisa haver beleza, para não estancar o cotidiano, como se dentro de cada mulher houvesse um universo que ninguém ousa ver, mas Vermeer ousava e queria ver este universo.

Talvez seja isso que você sente ao olhar para mim e para nós. Que algo está prestes a acontecer diante da dimensão do silêncio. Ou que algo já aconteceu e se perdeu em algum lugar. E quando você voltar a olhar pra mim, e pra nós, você pode se encontrar ou se perder. Estamos ali, num agora, ou num agora eterno.

Vermeer não tinha pressa. Quero dizer, tinha. Mas era uma pressa que era fixada na tela. Ele se foi, e nós ficamos no agora dos museus. O tempo, pra ele, era uma luz que, paradoxalmente, pode não iluminar o mundo. Mas nessa luz que não revela o mundo, há pensamento, que também é um elemento da pintura feito de luz. Uma luz que pode iluminar o mundo, assim como uma vela que se acaba pelo próprio consumir.

Esse mundo está no modo como meus olhos evitam o espectador, no peso suspenso da mão que hesita voar, na pausa entre um gesto e outro gesto já esquecido pelo movimento. Vermeer não pintou apenas corpos e objetos. Pintou o que está entre eles: o espaço onde o pensamento respira, onde a alma se esconde, demora e mora.

Lendo Maurice Merleau-Ponty, li que “a pintura torna visível aquilo que invisivelmente insiste no mundo”. E é isso que Vermeer fez comigo e com as outras que sou. Ele não pintou só o meu rosto ou minhas mãos. Ele pintou o que me atravessou e atravessa. Em resumo, ele criou minha alma de luz e sombra. O seu olhar vê a minha luz e a minha sombra.

Lendo Walter Benjamin, entendi que “a aura da obra de arte está na distância próxima”. Ora, isso pode querer dizer que a distância entre seu olhar e meu ser é a subjetividade da luz.

Bem, quem foi Johannes Vermeer? Vermeer nasceu em 1632 e morreu em 1675. Foi um pintor holandês do século XVII, amplamente reconhecido por suas representações silenciosas e luminosas da vida doméstica. Em um universo pictórico composto por interiores ordenados, janelas laterais e gestos suspensos, eu e as outras mulheres que sou assumimos protagonismo absoluto.

Portanto, e talvez, Vermeer seja a visibilidade do invisível, como dizia Maurice Merleau-Ponty, em "O Olho e o Espírito", ao afirmar que “a arte nos dá o ser como o aparecimento visível do invisível”. Eu gosto disso: “a arte nos dá o ser como o aparecimento visível do invisível”. Me sinto essa coisa visível do invisível. Em Vermeer, essa visibilidade do invisível manifesta-se na forma como o pensamento, a espera e a consciência são corporificados em figuras femininas.

A Laura Mulvey, em seu ensaio clássico "Visual Pleasure and Narrative Cinema"(Prazer Visual e Cinema Narrativo), criticou o olhar masculino e chamou de "male gaze"(olhar masculino). Disse que o olhar masculino instrumentaliza e objetifica a mulher nas artes visuais. Acho, como uma mulher visível do invisível, que Vermeer, ao contrário, propõe um olhar que escuta o pulsar feminino. Em vez de erotizar ou narrar a mulher, ele a contempla em sua interioridade.

Vermeer não invade a figura feminina com um olhar dominador, mas a acompanha em sua imersão e talvez prisão, ou autoprisão. Há, portanto, uma ética na representação. Ou seja, quero dizer que não me sinto presa nem cifrada com o olhar do Vermeer. Eu sou a presença visível do invisível num agora quase eterno.

Também lendo Georges Didi-Huberman, entendi a ideia de que “a imagem pensa”. Ela (a imagem) não apenas representa, mas resiste, provoca e interpela. Por isso, as mulheres de Vermeer pensam dentro da pintura. Eu habito um tempo que não é o tempo linear do relato, mas o tempo suspenso do pensamento. A pintura, assim, torna-se espaço de interioridade, de ausência de acontecimento, onde “o nada” é, na verdade, uma plenitude que pulsa.

Não posso deixar de falar de Gaston Bachelard. Em sua "A Poética do Espaço", ele fala da casa como um espaço de devaneio, de proteção da alma sonhadora. Os interiores de Vermeer materializam esse conceito. As janelas, as cortinas, os mapas, os tapetes e os objetos não são apenas elementos decorativos, mas extensões da subjetividade das mulheres que sou. O ambiente não é cenário. É espelho.

Voltando ao Walter Benjamin. Ele, ao discutir a "aura" da obra de arte, a descreve como “a aparição de uma distância, por mais próxima que ela esteja”. As mulheres que sou são assim: tão próximas, tão reais, e ainda assim inalcançáveis. Elas se mostram, mas não se esgotam em si. Somos vistas, mas não capturadas. Há um mistério que permanece e que protege as mulheres que sou. Que mesmo diante da aparente simplicidade, ainda assim, é mistério.

As mulheres que sou, em Vermeer, não são apenas protagonistas de suas telas, mas também somos mediadoras de um pensamento sobre a imagem, o tempo e o ser. Por meio de uma pintura que privilegia o instante, a luz e o espaço interior. Portanto, Vermeer construiu figuras assim como eu e como as mulheres que sou porque pensamos, sentimos e refletimos. Por isso, a pintura torna-se, como escreveu Merleau-Ponty, um ato de pensamento visível.




Referências

  1. Merleau-Ponty, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Ática, 2004.

  2. Didi-Huberman, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Contraponto, 2013.

  3. Mulvey, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. 1975.

  4. Bachelard, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

  5. Benjamin, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. São Paulo: Brasiliense, 1985.


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