segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Gehry e Niemeyer: a arquitetura como morada do espírito do tempo


Por Adu Verbis


Quando caminho entre as formas inquietas do arquiteto Frank Gehry (1929-2025) ou sob as curvas líricas e luminosas da obra de Oscar Niemeyer (1907-2012), percebo algo que sempre me escapa a resposta: como dois arquitetos tão distantes no tempo, no território e na história da arquitetura podem tocar o mesmo gesto essencial, o de transformar o espaço em testemunho da alma, e ainda assim revelar mundo tão distintos?


Ao me aproximar de uma obra de Frank Gehry, sinto como se estivesse adentrando um território onde a realidade é sonhada e perde o contorno fixo, talvez passando a oscilar entre sonho e realidade, vibrando como um quadro de Salvador Dalí, que se desfaz e se reconstrói diante de mim. Há algo na obra de Gehry que me inquieta e me deixa num estado quase claustrofóbico, que parece surgir não da falta de espaço, mas da presença excessiva de energia que me coloca em choque e me fragmenta. Pois tudo pulsa numa aleatoriedade, tudo se move sem recuo, tudo parece prestes a escapar do próprio espaço, como se cada peça sustentada pela estrutura tivesse um movimento nômade que nasce do instinto de recusar um estado fixo das coisas e, dessa forma, gera um conflito com a própria estrutura do edifício.


E, paradoxalmente, percebo que, enquanto observo suas superfícies metálicas refletindo a luz, nada disso nasce de uma dor explícita. Gehry, afinal, é um homem cuja alegria transparece, cuja leveza pessoal contrasta com a densidade de suas obras. Então, de onde vem esse drama espacial? Talvez de um mundo cultural marcado por tensões e rupturas, um mundo pós-guerra que aprendeu a desconfiar das formas sólidas, das certezas geométricas, das narrativas lineares. Talvez do fato de carregar, mesmo sem desejar expressá-lo diretamente, a memória subterrânea de uma herança judaica atravessada por deslocamentos, discriminações e reinvenções. Mas nada disso é declaração. É atmosfera. É o inconsciente cultural que encontra abrigo na arquitetura.


Quando volto meu olhar para Niemeyer, a vibração muda. As curvas continuam lá, mas respiram outro ar, outro clima, outra alegria. Niemeyer parece deixar a arquitetura dançar. Ela se dobra como o corpo, desliza como a água, balança como uma canção de praia. E, no entanto, quanto mais observo essa leveza solar, mais percebo a melancolia discreta que o próprio Niemeyer carregava. Um homem que tinha uma fala pausada, olhar reflexivo, convicções profundas e desencantadas sobre a sociedade cria espaços que desmentem sua tristeza: espaços abertos, luminosos, plenos de esperança, contudo, nas curvas que respiram a melancolia está presente.


O estilo de Oscar Niemeyer é reconhecido pela leveza das curvas, inspiradas na paisagem brasileira, no corpo humano e em sua visão poética do espaço e na visão política de um Brasil que busca seu lugar no mundo. No modernismo, Niemeyer absorveu princípios trazidos ao Brasil por Le Corbusier, como o uso expressivo do concreto armado, mas buscou no concreto suavidade e não brutalidade, além do plano livre e de uma arquitetura funcional e ao mesmo tempo monumental que não dialoga com o monumental clássico, mas o transforma em algo singular, marcado por curvas livres e grande força plástica. Suas obras apresentam formas amplas e fluidas que combinam simplicidade estrutural com expressão artística, reafirmando assim uma identidade brasileira profundamente espacial e sensorial, o que de certa forma reflete o olhar do brasileiro diante do espaço interétnico e das formas ainda por explorar da mistura sensorial entre conceito e natureza.


Não posso negar que Frank Gehry é produto de um meio cultural fragmentado e cosmopolita, com um estilo marcado por formas fluidas e inesperadas, associado ao desconstrutivismo, movimento que ganha força nos anos 1980, com raízes em influências como a crítica pós-moderna à estética modernista, pautada na filosofia de Jacques Derrida. Nessa colisão entre cidade e reinvenção constante é que Gehry encontra seu néctar.


Um néctar de natureza exuberante e tensões dialéticas e históricas profundas, onde a linha curva se torna metáfora da passagem de uma identidade que resiste mesmo quando não se explica ou quando encontra apenas uma explicação fugaz. As obras de Gehry utilizam materiais como titânio, aço e vidro para criar superfícies curvas e dinâmicas que permitem a fuga do olhar nômade numa paisagem cosmopolita onde tudo muda constantemente, desafiando a lógica tradicional. Gehry trata a arquitetura como uma escultura que nega a forma permanente e, assim, gera edifícios que relativizam a percepção do espaço urbano com viés desconstrutivista.


Portanto, no casulo modernista, é como se Niemeyer dissesse, com sua expressão séria e triste: "Sou triste, mas quero entregar ao mundo aquilo que me falta." Enquanto Gehry em seu casulo desconstrutivista, ao contrário, sempre parece dizer: "Sou leve, mas enxergo o caos que habita a modernidade." Percebo que a arquitetura de cada um nasce não apenas de suas almas, mas da alma do lugar que os formou.


Contudo, nunca deixo de pensar no que há em comum entre Gehry e Niemeyer. Talvez seja a coragem de transformar o espaço ou a convicção de que a arquitetura não é apenas um abrigo, e sim testemunho. É a casa onde guardamos nossos sonhos, nossas dúvidas, nossos medos e nossas esperanças pautadas pela forma como percebemos o mundo. E, enquanto caminho entre as obras desses dois arquitetos, compreendo que cada curva, cada volume, cada sombra e cada luz é, no fundo, uma forma de dizer que, na arquitetura, a alma encontra um lugar para guardar o seu existir.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

A Parasocialidade e o Parapáthos do Ego



Por Adu Verbis

Quando penso nas horas que passei e passo acompanhando a rotina de criadores de conteúdo, celebridades e influenciadores, percebo que algo mais profundo foi surgindo além do simples entretenimento. Não é só observar ou consumir. É sentir. É quase como uma sensação estranha de proximidade, de intimidade, mesmo sabendo, racionalmente, que aquela relação nunca seria recíproca e até pode ser perigosa, porque muitas vezes eu nem entendo direito o que essas celebridades e influenciadores querem dizer ou se realmente compreendo a concepção de mundo dessa gente com quem, de algum jeito, me sinto próximo por meio de algum meio mediático.


Descobri, tarde, que participo de uma relação parasocial que gera causa e efeito, e as causas e os efeitos disso eu acabei chamando de parapáthos do ego. Mas o que seria esse parapáthos do ego? É como um sofrimento, ou um impacto emocional, que vem de um lugar meio deslocado, desviado, não direto. Um páthos que não nasce da relação real, mas de uma via lateral: imaginária, projetada, meio borrada.


E aí eu penso de onde vem esse termo parasocial, que hoje está em toda parte. Horton e Wohl, dois pesquisadores norte-americanos de 1956, já tinham identificado esse fenômeno que hoje ficou tão comum. O público desenvolve vínculos afetivos com figuras mediáticas como se fossem amigos ou familiares, mesmo quando a figura nunca vai saber que essas pessoas existem.


Hoje, no mundo das redes sociais, das lives, dos stories, tudo isso fica ainda mais intenso. A imersão é constante. É como se o mundo inteiro coubesse em uma tela e cada interação fosse um fio invisível ligando minha vida à vida do outro, às vezes por sentimentos confusos, fuga da minha própria realidade social ou até por um desejo quieto de ser igual a essas figuras mediáticas.


Minha própria experiência revela o que chamo de parapáthos: a paixão do ego pela identificação com alguém que existe basicamente como imagem projetada. Chamo assim porque é um estado emocional que vive ao lado de um páthos pleno, uma espécie de afecção limítrofe, um sentir que quase vira sofrimento, quase vira paixão, quase vira uma identificação profunda — mas fica sempre no quase.


E não chega a ser um transtorno, nem um laço real. É um movimento afetivo marginal, suave, que nasce do contato constante com imagens e presenças mediáticas que parecem próximas, mas não são. É o sentir “quase”, aquele afeto que encosta, mas não atravessa, que aparece como uma sombra de vínculo que chamamos de parasocial.


Cada like, cada comentário, cada story assistido funciona como um pequeno ritual de autoafirmação. Meu ego se reconhece nessa percepção de intimidade com alguém que, na prática, não oferece reciprocidade. A parasocialidade não é neutra. Ela se mistura com minha necessidade de afirmação e transforma o vínculo numa espécie de intimidade de mundo compartilhado, ilusória ou forjada, para me fazer sentir parte de alguma coisa que o mundo oferece como socialização.


David Giles, psicólogo e pesquisador britânico especializado em psicologia da mídia, celebridades e comportamento do público, afirma em sua revisão da literatura que essa relação pode ser tão intensa quanto vínculos sociais reais, embora continue unilateral.


Mas é impossível não se perguntar: o que significa sentir amizade, confiança ou proximidade emocional por alguém que nem sabe que eu existo? O mundo digital sabe esconder seus caninos, e mostra esses caninos na hora certa, porque influenciadores, desde streamers até YouTubers e TikTokers, cultivam conscientemente essas conexões, muitas vezes compartilhando vulnerabilidades e detalhes íntimos da rotina. Isso reforça a ilusão de reciprocidade e repete padrões que, sinceramente, não são nada saudáveis.


O parapáthos surge quando essa percepção de intimidade é internalizada como realidade. A figura parasocial vira uma extensão de mim. E, de certa forma, não só ocupa minha atenção e meu tempo, mas passa a servir como um espelho emocional, refletindo desejos, medos e aspirações. É fascinante e inquietante perceber que minha felicidade, em alguns momentos, depende da performance mediática e digital de outra pessoa.


A digitalização extrema deixa tudo mais intenso. Interações em tempo real, algoritmos que empurram conteúdos consumidos quase sem perceber e materiais emocionalmente envolventes criam essa sensação de proximidade e pertencimento, quase como um controle emocional terceirizado. No TikTok ou no Instagram, assim como em outro meios, vejo fragmentos de vidas cotidianas e penso que conheço aquelas pessoas profundamente. Talvez porque desejo ser reconhecido também, mas a intimidade ali é mediada, filtrada e cuidadosamente construída por propósitos que nem sempre são claros para mim, que consumo tudo de forma passiva.


O ego se alegra com essa sensação de conexão, mas a conexão é fabricada e unidirecional. Isso me consome e, às vezes, me deixa vazio e perdido existencialmente, porque, quando volto para mim, só vejo a solidão. E isso afeta meu emocional num mundo complexo, manipulado por algoritmos e sustentado de forma cada vez mais frágil. E é aí que mora a lição mais profunda: a parasocialidade não é um problema por si só. Ela é, antes de tudo, uma janela para mim mesmo, uma chance de reconhecer minhas necessidades, meus desejos e minhas vulnerabilidades existenciais.


O parapáthos se manisfesta quando confundo o reflexo com a presença, a projeção com o outro. A intimidade que sinto é real em emoção, mas ilusória em reciprocidade. Preciso reconhecer essa diferença e aprender a navegar entre percepção e realidade, entre imagem e essência, entre ego e esse mundo sempre em reconstrução.


No fim, a parasocialidade funciona como um espelho emocional mediático e digital. Ela permite sentir companhia, explorar afetos ilusórios e refletir sobre quem eu sou. Mas a celebração do ego do outro, com quem me sinto íntimo, precisa ser consciente para não ferir meu próprio ego quando mergulho no parapáthos. Caso contrário, corro o risco de viver em um mundo de intimidades simuladas, onde a sensação de conexão substitui o contato genuíno e a reciprocidade se dissolve em projeção doentia. E o resultado disso pode ser frustrante quando me encontro comigo mesmo e com a própria solidão existencial.





P.S.

O termo parasocial costuma ser definido como um tipo de relação unidirecional, no qual uma pessoa sente conexão, intimidade ou familiaridade com alguém, geralmente uma figura pública, celebridade ou criador de conteúdo, sem que essa pessoa conheça ou retribua a relação.

O termo parapáthos enquanto neologismo

Definição geral

Parapáthos designa uma afecção limítrofe que se encontra ao lado ou no limiar do páthos, sem se constituir plenamente como tal. É um estado intermediário entre normalidade e afecção: física, emocional ou existencial.

Dimensão Psicológica

Como páthos também é emoção intensa, parapáthos indica uma emoção fraca, marginal, quase paixão, ainda sob controle.

Sentimento tênue (proto-emoção)

Afecção emocional periférica

Estado que anuncia um páthos emocional mais forte

Exemplo: a inquietação leve que antecede o medo pleno; o entusiasmo discreto antes da paixão.

Dimensão Filosófica

Em contexto estoico, parapáthos poderia ser visto como a perturbação inicial ainda controlável pela razão, o primeiro movimento da alma antes do páthos propriamente dito; transição entre apatheia (não-perturbação) e páthos (perturbação).

Em fenomenologia, parapáthos seria uma afecção lateral, aquilo que toca o sujeito de modo indireto, sem envolvê-lo totalmente.

Definição sintética

Parapáthos é uma afecção marginal, incipiente ou prévia, que se situa ao lado do páthos, seja como pré-doença, pré-emoção ou pré-perturbação, e anuncia, sem ainda constituir, um estado patológico ou passional completo.


Referências:

Horton, D., & Wohl, R. R. (1956). Mass Communication and Para-Social Interaction: Observations on Intimacy at a Distance. Psychiatry, 19, 215–229.

Giles, D. C. (2002). Parasocial Interaction: A Review of the Literature and a Model for Future ResearchMedia Psychology, 4(3), 279–305.

Rubin, A. M., Perse, E. M., & Powell, R. A. (1985). Loneliness, parasocial interaction, and local television news viewing. Human Communication Research, 12(2), 155–180.


Kowert, R. (2021). Video Games and Social Competence. Routledge.