Por Adu Verbis
Eu já não compro mais a ideia de que o Estado é um erro que pode simplesmente ser desligado, nem a noção de que ele deve, ou vai, desaparecer quando a humanidade amadurecer. Essa ideia pressupõe um ser humano utópico que nunca existiu e nunca existirá. Hoje, não consigo mais pensar o Estado nem como um simples erro histórico, nem como uma entidade redentora.
Quanto mais avanço na leitura de Marx, dos liberais e de seus críticos, mais me parece que o Estado é menos uma escolha moral e mais uma consequência estrutural de um conflito social que precisa ser administrado. Ou seja, o Estado impõe limites porque a humanidade não é capaz de se auto-organizar em prol de um bem comum coletivo, mas sim em prol de grupos que definem quem é digno de pertencer e quem deve ser excluído.
Marx estava certo em um ponto fundamental: o Estado não é natural. Ele não cai do céu, não nasce de um instinto moral, não é neutro. Ele surge do conflito. É uma máquina histórica criada para organizar a violência social e dar forma legal ao que, sem isso, seria puro confronto. No capitalismo, o Estado vira o balcão da burguesia, segundo Marx. Já no comunismo, parece que o Estado se perde diante da complexidade dos conflitos e acaba não conseguindo resolvê-los.
Talvez Marx acreditasse demais no ser humano. Assim, pensava que, resolvida a questão material, a contradição desapareceria junto. Como se o desejo de poder, de controle e de hierarquia fosse apenas um subproduto da economia, e bastasse uma direção ética para lapidar o lado ruim do homem e fazer emergir o seu lado bom por meio da consciência política, resolvendo, então, os conflitos e contradições. Marx era um grande teórico, mas sabia pouco sobre o ser humano.
Porque o ser humano não é apenas explorado; ele também explora. Não é só vítima; também é abusador e gosta do poder. Existe um prazer real no controle, no domínio, em estar acima, e isso atravessa classes, ideologias e discursos morais. Marx desmonta o Estado como forma histórica, mas subestima o quanto a brutalidade humana é reciclável e duradoura, justamente porque o ser humano é essencialmente contraditório. Portanto, a frase “faça o que eu mando, não faça o que eu faço” veste muito bem a alma humana e revela que o conflito começa no sujeito antes de se expandir para a luta de classes.
Adorno enxergou esse conflito com mais clareza. Quando fala do Falso, não se refere apenas à ideologia econômica, mas a algo mais profundo: uma sociedade inteira organizada para produzir sujeitos adaptados, conformados e obedientes, que ao mesmo tempo desejam mandar quando têm a chance de exercer poder. Como diria Nietzsche, seguem o desejo de outros desejosos de poder. O Falso não é apenas a mentira que a burguesia conta e que se institucionaliza como prática. É a mentira que as pessoas aceitam porque ela organiza o caos interno: a ideia de que a própria vez vai chegar e de que o poder e a fortuna virão por mérito. O Falso é a matéria-prima da sociedade dividida em classes ideológicas e religiosas.
Por isso, a ideia do definhamento do Estado, termo usado por Marx, soa bonita no papel, mas ingênua na prática. Não porque o Estado seja bom, mas porque o vazio que ele deixaria não seria preenchido por cooperação espontânea ou por uma milícia da boa vontade. Esse vazio seria ocupado por algo pior: o poder cru, sem mediação, sem limites, sem sequer o constrangimento da lei capaz de freá-lo.
O liberalismo radical também trabalha pelo definhamento do Estado, acreditando que sua retirada resolveria o problema. Não resolve. Apenas muda quem manda. O poder não desaparece; ele se privatiza. A violência não acaba; perde apenas o verniz institucional. O mercado não pacifica nada. Apenas organiza o conflito em favor dos mais fortes e de quem se dispõe a vender falsos benefícios.
O mais irônico é que esses liberais radicais acabam reutilizando ideias de Marx sem perceber. Também acreditam que o Estado não é natural. Também acham que ele pode desaparecer. Ignoram, porém, que sem mediação o conflito não some; transforma-se em sobrevivência. E a sobrevivência não gera liberdade, mas barbárie e genocídio.
O que Marx esquece, e Adorno lembra, é que a dominação não é apenas estrutural; ela é desejada e pensada. Há algo profundamente humano em querer controlar o outro, em impor ordem, em transformar insegurança em autoridade. O Estado não nasce apenas da economia, mas do medo, da agressividade e da necessidade de controle. Por isso, nunca definha de verdade, pois quem sustenta o Estado busca poder, não equilíbrio entre classes nem o fim da luta de classes.
Enquanto houver pessoas que se sentem seguras mandando e outras que aceitam obedecer em troca de estabilidade ou benefícios pessoais, o Estado continuará ali. Mudará de forma, de discurso e de ideologia, mas sempre organizará o conflito de maneira aceitável. Trata-se da administração de um falso equilíbrio em prol da manutenção do poder.
Talvez o erro não seja pensar o Estado como solução ou problema, mas reconhecê-lo como sintoma de uma essencialidade humana submetida a um processo de aculturação (processo de domesticação da selvageria humana). O Estado é esse sintoma, não sua superação. Por isso, ele não se estabiliza: bambeia, como um bêbado, entre um equilíbrio possível e a selvageria institucional. Enquanto sintoma, não é justo, não é neutro, nem bom; funciona apenas como mecanismo de organização e redistribuição da violência e da desigualdade que expressa. E toda teoria que ignora o quanto o ser humano é essencialmente contraditório, ressentido e sedento por poder termina por se converter exatamente naquilo que prometia superar: mais uma forma bem-intencionada de dominação.
No fim, talvez o mais honesto seja admitir: não somos racionais o suficiente para viver sem Estado, nem éticos o suficiente para torná-lo verdadeiramente emancipador. Enquanto isso não muda, se é que pode mudar, o Estado permanece, não porque deveria existir, mas porque somos exatamente quem somos: humanos predatórios. Precisamos e autorizamos a vigilância do Estado para conter uma selvageria que não suportamos, mas que utilizamos quando convém. A luta de classes nunca foi apenas por bens materiais, mas por poder simbólico, e é desse poder simbólico que emana a violência simbólica. Da luta de classes sempre podem nascer rosas de Hiroshima.

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