Por Adu Verbis
Eu já falei para minha mãe que nem percebi quando deixei de confiar no que sabia. Em tudo o que ela e o mundo me ensinaram como certo e errado. Não houve um momento claro de ruptura entre o que eu sabia e o que deixei de saber, nem vivi algum gesto dramático. Foi mais parecido com um silêncio que se instala aos poucos, como um calçado apertado. Como se a minha experiência deixasse de ter peso. Como se aquilo que eu via, sentia e pensava precisasse sempre de validação externa para existir. Assim como a aprovação das roupas que eu vestia, porque todos vestiam as mesmas roupas que eu. Hoje chamo esse estado de abandono epistemológico: não é ausência de informação, mas a perda do direito íntimo de conhecer a partir de mim.
Então passei a repetir discursos com mais facilidade do que formular perguntas, porque as perguntas podem ser pedras no sapato ou o calcanhar de Aquiles. Então, adaptei as palavras que já vinham prontas. As explicações já estavam dadas, e eu apenas as vestia, como quem aceita um uniforme. Afinal, uniformes são respeitados. Vi que havia conforto nisso. Pensar por conta própria exigia enfrentar o risco do erro, do isolamento, da incompreensão. Pertencer, ao contrário, oferecia abrigo. Bastava concordar. Bastava alinhar tudo.
Nesse ponto, a imaginação simbólica coletiva tornou-se mais forte do que a minha própria capacidade de imaginar quem eu era e quem eu poderia ser. Ela oferecia imagens prontas de humanidade, de pertencimento, de valor resiliente. Eu só precisava escolher onde me encaixar. A escolha parecia liberdade, e eu até achava que era mesmo liberdade, mas era apenas seleção entre moldes. A imaginação individual, mais lenta, contraditória e incômoda, começou a parecer um risco e algo desnecessário.
Foi assim que me encontrei no que chamei de desencontro ontológico. Esse desencontro se instalou em mim não como uma crise explícita, mas como um deslocamento contínuo. Eu existia em narrativas que não tinham sido geradas a partir de mim, e nem mesmo sabia de onde vinham. Minha presença era real, mas minha existência era derivada de algo que, ontologicamente, formatava uma presença incognoscível. Eu era reconhecido, mas não era refletido enquanto razão. Olhava para as imagens que me representavam e sentia uma familiaridade estranha, por assim dizer. Como quem se vê em um espelho que devolve um rosto correto, mas vazio, como se fosse um reconhecimento facial que, no entanto, recusava a minha identidade. É assim, estranho, mas era isso mesmo.
Comecei também a perceber que a fragmentação do ser não acontece do nada, nem apenas quando somos violentamente negados, mas também quando somos excessivamente integrados, a ponto de escoar o ser pela medula óssea. Contraditoriamente, cada pertencimento exigia pequenas renúncias: uma dúvida que não deveria ser formulada, uma pergunta considerada nada a ver, uma experiência pessoal desqualificada por não caber na gramática coletiva. Essas renúncias, isoladamente, podiam não parecer graves, mas juntas formavam um padrão de autoapagamento de tudo o que eu era. Eu era tudo e nada ao mesmo tempo, uma mistura que enlouquecia, porque o ser é frágil, como sangue que corre nas veias e pode ser contaminado por nanos perigos da essencialidade.
E, enquanto me aprofundava no abandono epistemológico, esse processo se intensificava porque eu já não confiava na minha experiência como fonte legítima. Eu sentia, mas precisava confirmar nos paradigmas que me compunham e me desconstruíam. Eu intuía, mas precisava traduzir tudo em uma linguagem autorizada pela episteme que supunha o que era verdade. Aos poucos, aprendi a desconfiar de mim antes mesmo de qualquer questionamento externo. A censura tornou-se interna, elegante até certo ponto, e eficiente em roer as unhas que cresciam sem autorização. Eu mesmo filtrava o que podia ou não existir em mim, já moldado por um valor resiliente líquido que sempre acabava em enxurrada.
Nesse estágio, por assim dizer, atávico e errático, em um êxodo do não-ser nos não-lugares, a busca por pertencimento se intensificou. Enquanto isso, deixei que o ser desejoso se tornasse apenas uma necessidade ontológica. Pertencer não era só estar com os outros, mas garantir alguma continuidade do ser errático no meio de uma emoção que parecia enxurrada. O grupo oferecia aquilo que eu havia perdido: contorno, nome, estabilidade. Em troca, pedia coerência. Não a coerência viva do ser em processo, mas a coerência ideológica da imagem e da manutenção da ideologia. Eu aceitei, porque a alternativa parecia ser o vazio, e o vazio não gosta do ser, porque o ser já é vazio.
Mas o vazio nunca desapareceu. Ele apenas mudou de lugar. Em vez de estar fora, passou a habitar zonas silenciosas da minha existência, aquelas que não encontravam linguagem, reconhecimento ou utilidade no ser e no não-ser. Eu me tornava cada vez mais competente em sustentar uma identidade e cada vez menos capaz de escutar o que não cabia nela. O desencontro ontológico não gritava; ele se acumulava como uma erosão em um sítio íngreme.
Houve um momento, lento e sem epifania, em que compreendi que não se tratava de escolher entre o eu e o nós, mas de recusar um tipo específico de nós: aquele que só existe à custa do abandono epistemológico. Um nós que exige a suspensão da imaginação individual, que transforma pensamento em lealdade e identidade em trincheira ideológica que promete, mas não entrega.
Percebi também que recuperar a capacidade de conhecer a partir de mim não significava rejeitar o mundo, mas reaprender a habitá-lo, porque o mundo cobrava resiliência o tempo todo. Reivindicar a experiência como fonte de sentido é um gesto pequeno, quase imperceptível, mas com algo de subversivo. Passei a aceitar um ser pequeno e, ao mesmo tempo, excessivo. Um ser que não cabe inteiro em nenhuma imagem coletiva. Toda tentativa de fechamento do que se é produz mais fragmentação, porque o ser, em si, é excessivo na própria pequenez. Não a de Pequim, nem a do cachorro pequinês, mas a pequenez ontológica.
Hoje, quando penso em pertencimento, já não imagino fusão, mas vizinhança. Talvez porque minha vizinha me odeie, e eu juro que não fiz nada para isso acontecer. Estar junto sem desaparecer sempre foi um sonho. Compartilhar sem diluir também foi um ideal. Reconhecer sem capturar já soa abstrato demais. Isso não resolve definitivamente o abandono epistemológico nem o desencontro ontológico. Talvez nada resolva. Mas cria frestas de esperança, possibilidades de pertencimento e espaços onde o ser que sou pode respirar sem pedir permissão às praxes. A praxe é sempre habitual, já dizia minha vó.
Falo isso comigo mesmo porque falar consigo ainda é uma forma de resistência íntima. Um esforço de reunir o que foi separado, de dar linguagem ao que ficou à margem, de lembrar que existir não é apenas ocupar um lugar no mundo, mas poder dizer, mesmo com hesitação: isto é o que vejo, isto é o que sou, por enquanto. Por enquanto.
Hoje entendo que resistir ao abandono epistemológico é um ato de cuidado consigo. Enfrentar o desencontro ontológico é aceitar que o ser não cabe inteiro em nenhuma imagem ou ideia pronta, ou mesmo num lugar que não seja um não-lugar. Entre o desejo de pertencer e a necessidade de existir, sigo tentando construir um lugar onde seja possível, enfim, habitar o que sou, porque nem eu mesmo sei exatamente o que sou. Ainda não sei que sou... Mas também tenho dúvidas se saberei.

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